Não faltam muito mais posts a falar sobre meus treinos na Etiópia, mas não dá para não passar por 2 dos aspectos que foram dos que mais me impactaram. Eu havia dito que antes do meu primeiro treino uma coisa me chamou atenção: mesmo estando a menos de 2km do local, nós fomos de carro e não trotando. Eu me sentia como aquelas pessoas que pegam elevador para ir à academia ou o carro à padaria. Meio triste, meio irracional.
Os etíopes treinam em média entre 10 e 14 vezes por semana. A minha surpresa chegando lá é que apenas UMA sessão por semana é feita em asfalto. UMA. E ela é feita em asfalto por 2 motivos principais: porque as competições são em asfalto, então este é um jeito de você manter contato com este piso. E também porque nas estradas, assim como na pista, você consegue ter um controle maior da distância, podendo fazer treinos controlados por ritmo, não somente sensação ou tempo.
Uma passagem que me chamou atenção em Running with the Kenyans é quando o autor tenta convencer os quenianos a começar o treino alguns poucos metros antes da estrada de terra. Sem sucesso. Eles caminhariam pela calçada. Concreto e o asfalto machucam, os africanos sabem disso. E nós achamos que um tênis de R$699 compensa essa característica intrínseca do piso. Regra número 1: corredores quenianos e etíopes sabem mais sobre prevenção de lesões do que qualquer fisioterapeuta ou médico. O primeiro grupo vive de não estar machucado, os outros 2 vivem de tratar (bem ou mal) o lesionado. Os interesses são dissociados.
O corpo é o instrumento de trabalho mais importante do atleta. E os etíopes (e agora você sabe que também o queniano) fogem do asfalto como o diabo foge da cruz. Eu não conseguia explicar aos treinadores que aqui no Brasil todo treino dos amadores é feito sempre em asfalto. Eles não conseguiam entender como alguns dos melhores parques da cidade não têm corredores nas trilhas (como a “volta da grade” ou a Pista de Cooper do Parque do Ibirapuera, ou ainda o Alfredo Volpi próximo ao Jóquei Club). Ou ainda: como explicar que 99% das pessoas que pegam o carro para ir à USP treinar não correm nas trilhas das ilhas centrais das avenidas. Eu me sito um E.T. sempre que estou lá, pois tudo aquilo é só meu com o asfalto lotado! O Bosque da Física na mesma USP, inteira de terra batida, está sempre deserta, é um latifúndio que só teria gente se fosse (toc-toc-toc, sai zica) concretado. A própria pista de atletismo da USP é rodeada por uma trilha de 1050m que tem muito menos gente treinando do que a própria pista, um completo non-sense.
O corredor brasileiro é muito estranho. Eu tenho uma tia que faz caminhadas dentro de um shopping center. Dentro. De. Um. Shopping. E em grupo. Orientado. Mas a culpa, sejamos honestos e justos, não é só dos corredores, mas MUITO por culpa dos treinadores.
Você vai sempre encontrar um consultor mal informado dizendo na revista das vantagens de correr na esteira, ou explicando dos perigos e cuidados de correr em trilhas. Os treinadores atuais confundem aquilo que não entendem com aquilo que não existe. Dia desses um coitado de um médico veio mostrar sua ignorância sobre risco no meu Facebook. Ele se mostrou ser do tipo que quando chega bêbado em casa sem as chaves, a procura somente embaixo do poste de luz, que é onde enxerga, ele ignora que pode estar em qualquer lugar escuro. Pois quando você pede ao seu atleta para não correr na trilha para não torcer o pé você demonstra não compreender os riscos de correr no asfalto (ou na esteira). As lesões na corrida são em sua maioria por esforços repetitivos, não torções. E correr em pisos estáveis (asfalto, pista, esteira…) é a garantia que você executa o exato mesmo movimento em todos os treinos. É você pagando alguém para te machucar ao mandá-lo fazer esforços repetitivos não-essenciais. E este alguém, em vez de te fazer correr melhor (aquilo que você realmente quer), tenta não te machucar impedindo que você corra muito melhor. Não faz sentido.
E aí chegamos ao segundo ponto deste texto, o volume. Como eu disse, eu não faço ideia de quantos quilômetros corri na África. Nem o ritmo. Volume alto é fundamental na corrida. Mas você só consegue isso quando ele não te machuca. Corríamos sem controle de velocidade, de quilometragem, de frequência cardíaca, mas também sem dores.
Uma coisa que escondi da equipe para que não me tratassem diferente é que pela manhã tenho muitas dores quando corro. Por isso também só quase corro de noite, quando elas já passaram. Na Etiópia corri sem dores nenhuma às 6h30. Desde que cheguei ao Brasil implementei muito do que vi lá fora e venho treinando sem dor alguma. Eu corro menos nas sessões, mas corro mais e sem dor. O volume final assim é maior.
Por isso também que durante meu período lá não falávamos sobre equipamento. Eles não ligam para isso. E é sobre equipamento que falarei no próximo texto.