Ontem eu falei sobre como 2,9% impactam a corrida de um corredor de longa distância. Essa margem serve para colocar 2 pessoas em gavetas diferentes. Um tênis de R$1.500 poderia dar 4% de vantagem? Eu jamais teria coragem de afirmar isso. São várias as razões.
Primeiro vamos a um dos apelos mercadológicos. O apelo é que o modelo melhoraria em 4% a economia de corrida. Mas a literatura nos indica que uma melhora de 4% nesse marcador traz ganho não de 4%, mas de 1% no tempo da prova. Imagine o seguinte, que um equipamento garante que você melhore 35% da sua força máxima no agachamento ao usá-lo. Você pode dizer que sua maratona ficará 35% mais rápida? NÃO. A força máxima, assim como a economia de corrida, é “só” UM componente dentre tantas valências.
Outro apelo. Engana-se quem pensa que uma empresa que promete algo no tênis precisa entregá-lo. Nesse mercado a empresa precisa não entregar, mas apenas que o comprador ACREDITE que irá receber esse algo. Já se eu vendo um celular com 64Gb de memória, eu PRECISO entregar esses 64Gb. Com tênis NÃO é assim.
Não há nas promessas do setor NENHUMA evidência que entregam NADA do que vendem. Conforto? Subjetivo e pessoal. Amortecimento? Nada. Controle de movimento? Redução de lesões? Idem… nada! Eu preciso, e aqui está a pegadinha, é que eu entregue (sem evidências!) a UMA pessoa e ter o trabalho (bem feito por sinal!) de convencer a TODOS os demais compradores de que eles TAMBÉM terão os mesmos benefícios.
E se AINDA ASSIM eu não entregar? Tudo bem! O ser humano morre de vergonha de admitir que foi de certa forma ludibriado. Você nunca verá alguém que gastou R$1.500 em um modelo falar publicamente que ele é ruim. E quem ganha (jabá) TERÁ que falar que ele é bom, afinal, essa é uma regra IMPLÍCITA desse jogo de relações.
De um ponto de vista mais técnico, essa indústria tenta pelo menos desde os anos 80 inventar uma tecnologia quer amorteça e impulsione todos os corredores. O ENORME desafio é que as individualidades tornam isso quase impossível de ser alcançado “universalmente”. Cadência, peso do atleta, tipo de pisada, ritmo, tempo de contato com o solo, amplitude de passada… você teria que ter um tênis inteligente.
A F-1 e a corrida
Nos anos de 92 e 93 Ayrton Senna tomava uma surra nas pistas por causa da revolucionária tecnologia de suspensão ativa que somente a Williams dominava. Em 93 sua McLaren passou a ter, mas sem a mesma “leitura” de pista (além de todo o conjunto). Uma década depois a adidas lançava o seu adidas 1, um trambolho que prometia ler a pisada do atleta pelo preço de R$1.000 (isso em 2006!).
Ele era pesado e foi esquecido. Como “ler” pisadas tão diferentes?? Para isso o modelo tinha um processador, que invariavelmente aumenta o peso do calçado. Mas sabemos que 100g a mais nos pés piora em 1% a eficiência do corredor. Entende o tamanho do desafio?
NÃO, eu NÃO estou nem de longe afirmando que um tênis não possa nos dar benefícios… mas 4%?! A todos? Isso eu afirmo com certa tranquilidade que não acho ser possível ainda por causas das particularidades, pois você tem que “sincronizar” o trabalho da tecnologia para padrões muito particulares. Mas como disse, um fabricante precisa apenas convencer o consumidor que ele pode ser UM DOS a ter benefícios.
Por fim, entre achar que o tênis dá 4% de melhora e que Eliud Kipchoge é um atleta excepcional, você só pode escolher uma das opções. As duas está fora de questão, porque sem 4% ele é apenas um atleta muito bom.