VO2máx? É sobrevalorizado! (*consumo máximo de oxigênio).

Tempo atrás quando eu explicava por que a Cadência é um marcador muito pobre e limitado ao corredor amador, usei a expressão de que ela “é o VO2máx do nosso século”. Um leitor pediu que eu explicasse por que considero essa métrica meio inútil.

Interesso-me em saber o VO2máx de um corredor amador tanto quanto me interesso pela sua envergadura, ou seja, ela me diz muito pouco. Em uma longa revisão do tema de 2006 os autores abrem o artigo dizendo que “o consumo máximo de oxigênio (VO2máx) tem sido sugerido como a capacidade fisiológica mais importante na determinação do desempenho de corrida de resistência”. Mas… será mesmo?

Nassim Taleb magistralmente disse algo como “ao mundo acadêmico não há diferença entre a universidade e o mundo real. No mundo real há”. Aplicando isso ao questionamento do VO2máx como métrica de desempenho (atual ou futuro) na corrida, basta sabermos que com um mínimo de espaço e UM cronômetro você realiza testes que dirão mais sobre desempenho do que um sofisticado laboratório de última geração.

Viemos por tantas décadas supondo que esse marcador estava intimamente ou fortemente ligado e correlacionado ao desempenho e à fadiga na corrida de longa distância (e NÃO está) que algumas verdades são duras mesmo de engolir.

Não me sinto superior ao falar que acho o marcador meio “inútil”. Já medi o meu. Já recomendei que clientes fizessem. E – olha que absurdo – até já usei esses valores!

No mesmo texto sobre cadência eu explico que uma régua só faz sentido para medir algo, quando você também consegue usar este algo para medir a régua (“Wittgenstein’s Ruler”). Sendo assim, um VO2máx NÃO serve para medir desempenho (ao menos não é muito preciso nisso) uma vez que:

  1. VO2máx NÃO está necessariamente relacionado com melhores desempenhos. Ou seja, a pessoa que chega à frente NÃO necessariamente tem um VO2máx melhor, mais alto;
  2. Em função do resultado de uma maratona (ou 10.000m, por exemplo) eu NÃO consigo determinar o VO2máx do(s) competidor(es). Ou seja, é uma régua que não “funciona” nas duas direções.

Por que isso? Novamente Wittgenstein’s Ruler: o VO2máx NÃO pode ser um expressor de desempenho (atual ou futuro) pelo fato de que uma vez que você tem o valor dele, você NÃO consegue com grande precisão fazer o caminho inverso, ou seja, com o valor de VO2máx em mãos, eu NÃO consigo dizer se um corredor é/será rápido.

Não sou eu que estou dizendo! Entre os maiores VO2máx já medidos, estão nomes que NEM DE LONGE foram grandes corredores. Assim como há grandes corredores que tinham VO2máx medíocres, medianos.

Isso porque a própria métrica é imprecisa! Como o VO2máx pode ser métrica de desempenho se você pode melhorá-lo SEM haver alterações no desempenho? Temos evidências consistentes de que o VO2max não muda/mudou em corredores treinados!

Seria o VO2máx então completamente INÚTIL?

NÃO! Nem mesmo a cadência é inútil! TUDO acaba servindo para algo!

Lembra que falei que a envergadura não me serve quando falo de desempenho de corredores? O debate quando se centra na importância do “quanto é o VO2máx do Fulano?” me faz lembrar como aquele “especialista” que acha que altura é variável positiva de desempenho em jogadores de basquete. Ou seja, quanto mais alto melhor. Não é! Voltando à envergadura, parece dentro do basquete haver uma correlação maior de desempenho não com altura, mas com a envergadura do atleta! Mas nunca perguntamos pela envergadura e sim… altura!

Quanto mais alto um atleta, teoricamente maior a envergadura dele, e quanto maior a envergadura, maior é a capacidade defensiva desse atleta (lembre-se que ele tenta roubar a bola do adversário com as mãos, quanto mais longo o braço, mais fácil)! Quando uma pessoa tem grande envergadura ele provavelmente é alto e pode roubar bolas! O contrário, como mostram as estatísticas na modalidade, acredite, NÃO é verdadeiro!

Parece no basquete haver uma altura MÍNIMA para chegar ao alto nível e uma a partir da qual ela POUCO (ou menos) importa. O VO2máx parece ser assim, um valor X a partir do qual é necessário (quase essencial) para que você seja (não que você vá ser!) um grande corredor, mas POUCO IMPORTA depois ou acima disso. E ele é limitado justamente porque mesmo sendo (muito) acima disso ele NÃO traz garantias de que você será SEQUER campeão escolar dos 3.000m!

A limitação dele está no fato de que ele é simplesmente um teste que leva o indivíduo à exaustão. Mas faz isso de forma inespecífica na corrida e MUITO inespecífica para praticantes de outras modalidades. Por ISSO ele é tão impreciso no esporte.

Toda medição, assim como toda sessão de treino, deveria ter um propósito. O VO2máx é algo antigo, bem antigo. O conceito de VO2máx surgiu em 1923 quando a A.V. Hill e H. Lupton tiveram a ideia de que haveria um limite máximo para o consumo de oxigênio. O próprio pioneirismo deles dava pistas sobre sua limitação. Ainda na faculdade líamos sobre a obsessão de treinadores que mediam essa variável em jogadores e nadadores. Se nem na corrida, como o teste é feito em esteira, ele prediz com segurança, o que dizer nesses atletas?

A saber: ciclistas têm enorme variância porque fazem o teste em esteira. Mais. Mesmo corredores têm enorme variância individual de resultados! Ou seja, damos enorme valor a um teste que nem sequer sabemos fazer! (*e lógico que virá um vendedor dizendo que tem um teste bom, preciso e que irá cobrar de você para que faça com ele, vendedor de testes)

*e aqui um paralelo… semanas atrás houve um debate BEM interessante que mostrava ao povo acadêmico que o Quociente de Inteligência (QI) NÃO está nem pode ser relacionado com inteligência ou sucesso futuro. Desenterraram um estudo de 1995 no qual o mesmo indivíduo tirava 90 e 150 no mesmo teste de QI. Ou seja, VO2máx, QI e Cadência parecem compartilharem os 3, cada um em seu paraíso prometido, de uma característica: você precisa ter um valor mínimo, a partir dele é tudo o mesmo balaio.

 

Então por que medi-lo ou querer treiná-lo ou melhorá-lo?!?

Só treina o VO2máx de um atleta quem ainda não entendeu bem a ideia. Na verdade quando a pessoa usa a velocidade de VO2máx (vVO2máx) ela está melhorando a aplicação prática de algo! Não a métrica em si (até porque sabemos hoje que o treinamento é capaz de mudar a vVO2máx sem mudar valor do VO2máx).

Como o tempo gasto correndo na velocidade de VO2máx (vVOmáx) muda este, mas não aquele, temos que o que interessa mesmo na corrida é o ritmo, dane-se o VO2máx. Por isso que um cronômetro e uma pista resolvem, porém um laboratório não. Aliás, não existisse o conceito do VO2máx acredito que toda a especialidade da Fisiologia do Exercício hoje não teria muito mais o que fazer… estariam no olho da rua… dependem e se fundamentaram MUITO em algo que se mostra de certa forma limitado ou inútil no desempenho.

Limitado porque não prediz desempenho muito melhor que um dado de 6 faces e inútil porque treinar o VO2máx NUNCA deveria ser a meta e para isso invocamos a Lei de Goodhart: “Quando uma medida torna-se uma meta, ela deixa de ser uma boa medida.”

Para terminar (prometo!) em um tom mais otimista, como tudo, parece haver um pêndulo que vai de um extremo ao outro. Quando “inventaram” o VO2máx tudo girava ao seu redor e agora de modo prudente largamos isso ao pessoal de avental, que consegue ainda ver alguma utilidade porque estão quase sempre muitos anos atrás da prática. Outras coisas acontecem nesse sentido na corrida. Toda novidade é usada ao extremo até percebermos que houve excesso para abandonarmos 90% dela. Por isso hoje pouca gente dá valor ao VO2máx, porque ele é ruim no que se propõe.

 

E qual a utilidade ao amador?

Vou contar um causo de um grande treinador que exige de seus clientes o exame de VO2máx. Quando questionado por um corredor que já sabia de suas enormes limitações ele respondeu: não não… só quero que faça o teste para saber mesmo se você não vai morrer treinando comigo.

Bom, nem para isso ele serve. Mas aí é texto para outra hora.

p.s.: eu poderia resumir este enorme texto em poucas linhas. O VO2máx não serve porque ele é “apenas” um teste de exaustão. Só que ele leva o indivíduo (corredor ou não) à exaustão de uma forma inespecífica. Não tenho como dizer se a pessoa faz bem agachamentos fazendo um teste de flexão de braço até o limite. Mas como é feito em laboratório com pessoas de jaleco a gente dá uma importância desmedida. Fosse um treinador iletrado e barrigudo com um cronômetro na mão poderíamos ignorar todo o departamento de fisiologia da faculdade. 

Etiquetado , ,

10 pensamentos sobre “VO2máx? É sobrevalorizado! (*consumo máximo de oxigênio).

  1. Varga disse:

    Muito bacana e esclaredor este texto, Balu. Estou ansioso pelo “texto para outra hora” que vc mencionou.
    Mas, tenho uma dúvida. Todo ano faço exames cardiológicos como eco doppler de carótidas, hemograma completo, ecg e ergoespirometria. Deste último, dentre várias medições tem o VO2max.
    Na sua opinião, estes exames são pouco úteis ? Lembrando q meu contexto é: praticante de corrida com 48 anos, longe de ter e querer alto desempenho.

    Curtir

  2. Marcos Paulo disse:

    Valeu Balu, tá enterrado o assunto…
    Pô e a versão impressa do Correndo com os Etíopes, tem previsão?

    Curtir

  3. Pericles disse:

    Ótimo texto Balu! O Jack Daniels “transformou” essa medida em VdotO2, calculado em função em resultados de provas e utilizado para estimar resultados em outras distâncias e fixar faixas de ritmos em seções de treinamento. Ele teria acertado o que começou torto?

    Curtir

  4. ca0099 disse:

    Balu, de acordo. Mas adoro números. Gosto de ver subir (e odeio ver descer, tipo quando está mais quente – segundo o relógio…). Mas é como você falou, uma altura/envergadura, que podemos trabalhar para melhorar. Bem que o Strava poderia fazer uma correlação de vo2max com tempos em provas, em cima dos dados que possui.

    Curtir

  5. Fernando Siqueira disse:

    Parabéns pela matéria. Conhecendo agora as análises de um outro ponto de vista. Muito bom!

    Curtir

  6. […] Na corrida ela se aplica, por exemplo, ao VO2máx, à Cadência… a tantas coisas! Os gadgets, que pode parecer que eu seja contra (não é […]

    Curtir

Duvido você deixar um comentário...

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.