Correndo com os Etíopes – parte 7: sobre volume e piso.

Não faltam muito mais posts a falar sobre meus treinos na Etiópia, mas não dá para não passar por 2 dos aspectos que foram dos que mais me impactaram. Eu havia dito que antes do meu primeiro treino uma coisa me chamou atenção: mesmo estando a menos de 2km do local, nós fomos de carro e não trotando. Eu me sentia como aquelas pessoas que pegam elevador para ir à academia ou o carro à padaria. Meio triste, meio irracional.

Os etíopes treinam em média entre 10 e 14 vezes por semana. A minha surpresa chegando lá é que apenas UMA sessão por semana é feita em asfalto. UMA. E ela é feita em asfalto por 2 motivos principais: porque as competições são em asfalto, então este é um jeito de você manter contato com este piso. E também porque nas estradas, assim como na pista, você consegue ter um controle maior da distância, podendo fazer treinos controlados por ritmo, não somente sensação ou tempo.

Uma passagem que me chamou atenção em Running with the Kenyans é quando o autor tenta convencer os quenianos a começar o treino alguns poucos metros antes da estrada de terra. Sem sucesso. Eles caminhariam pela calçada. Concreto e o asfalto machucam, os africanos sabem disso. E nós achamos que um tênis de R$699 compensa essa característica intrínseca do piso. Regra número 1: corredores quenianos e etíopes sabem mais sobre prevenção de lesões do que qualquer fisioterapeuta ou médico. O primeiro grupo vive de não estar machucado, os outros 2 vivem de tratar (bem ou mal) o lesionado. Os interesses são dissociados.

O corpo é o instrumento de trabalho mais importante do atleta. E os etíopes (e agora você sabe que também o queniano) fogem do asfalto como o diabo foge da cruz. Eu não conseguia explicar aos treinadores que aqui no Brasil todo treino dos amadores é feito sempre em asfalto. Eles não conseguiam entender como alguns dos melhores parques da cidade não têm corredores nas trilhas (como a “volta da grade” ou a Pista de Cooper do Parque do Ibirapuera, ou ainda o Alfredo Volpi próximo ao Jóquei Club). Ou ainda: como explicar que 99% das pessoas que pegam o carro para ir à USP treinar não correm nas trilhas das ilhas centrais das avenidas. Eu me sito um E.T. sempre que estou lá, pois tudo aquilo é só meu com o asfalto lotado! O Bosque da Física na mesma USP, inteira de terra batida, está sempre deserta, é um latifúndio que só teria gente se fosse (toc-toc-toc, sai zica) concretado. A própria pista de atletismo da USP é rodeada por uma trilha de 1050m que tem muito menos gente treinando do que a própria pista, um completo non-sense.

O corredor brasileiro é muito estranho. Eu tenho uma tia que faz caminhadas dentro de um shopping center. Dentro. De. Um. Shopping. E em grupo. Orientado. Mas a culpa, sejamos honestos e justos, não é só dos corredores, mas MUITO por culpa dos treinadores.

Você vai sempre encontrar um consultor mal informado dizendo na revista das vantagens de correr na esteira, ou explicando dos perigos e cuidados de correr em trilhas. Os treinadores atuais confundem aquilo que não entendem com aquilo que não existe. Dia desses um coitado de um médico veio mostrar sua ignorância sobre risco no meu Facebook. Ele se mostrou ser do tipo que quando chega bêbado em casa sem as chaves, a procura somente embaixo do poste de luz, que é onde enxerga, ele ignora que pode estar em qualquer lugar escuro. Pois quando você pede ao seu atleta para não correr na trilha para não torcer o pé você demonstra não compreender os riscos de correr no asfalto (ou na esteira). As lesões na corrida são em sua maioria por esforços repetitivos, não torções. E correr em pisos estáveis (asfalto, pista, esteira…) é a garantia que você executa o exato mesmo movimento em todos os treinos. É você pagando alguém para te machucar ao mandá-lo fazer esforços repetitivos não-essenciais. E este alguém, em vez de te fazer correr melhor (aquilo que você realmente quer), tenta não te machucar impedindo que você corra muito melhor. Não faz sentido.

E aí chegamos ao segundo ponto deste texto, o volume. Como eu disse, eu não faço ideia de quantos quilômetros corri na África. Nem o ritmo. Volume alto é fundamental na corrida. Mas você só consegue isso quando ele não te machuca. Corríamos sem controle de velocidade, de quilometragem, de frequência cardíaca, mas também sem dores.

Uma coisa que escondi da equipe para que não me tratassem diferente é que pela manhã tenho muitas dores quando corro. Por isso também só quase corro de noite, quando elas já passaram. Na Etiópia corri sem dores nenhuma às 6h30. Desde que cheguei ao Brasil implementei muito do que vi lá fora e venho treinando sem dor alguma. Eu corro menos nas sessões, mas corro mais e sem dor. O volume final assim é maior.

Por isso também que durante meu período lá não falávamos sobre equipamento. Eles não ligam para isso. E é sobre equipamento que falarei no próximo texto.

Etiquetado , , , , , , , , ,

21 pensamentos sobre “Correndo com os Etíopes – parte 7: sobre volume e piso.

  1. Li (acho que aqui no Recorrido) que construíram uma pista de Tartan no Quênia ( ou seria Etiópia?) um tempo atrás mas os atletas continuaram a treinar na pista de terra pois a de Tartan era muito fácil…rsrsrs será que tem relação com a redução de impacto tbm?? Na pista de Tartan, aquela borracha por debaixo da superfície não a deixa bem menos agressiva, comparada a asfalto ou concreto?? Esses últimos sim sinto bem mais duros, depois pista, esteira, terra, grama…

    Curtir

    • Danilo Balu disse:

      Eu acho que é só na Etiópia… no estádio”Olímpico” que é do nível de um XV de Piracicaba… na pista eles vão 1-2x/semana, bem menos agressiva que o asfalto, mas pior que as de terra que vc vê nos vídeos sobre Iten (Quênia). Só que eles não têm acesso à pista! O Bekele, por exemplo, construiu uma só pra ele de carvão.

      Curtir

    • ciro violin disse:

      Ricardo, é possível que tenha uma pista de tartan no Quênia sim, Nairobi por ex é grande como Campinas SP.
      Mas onde se treina corrida no Quênia, que é Eldoret e Iten, que fica a 700km da capital, tem uma pista de tartan na cidade de Iten. Foi um presente da maratona de Londres para a Lornah uma queniana que se naturalizou holandesa, que ganhou algumas provas importantes e que tem um centro de treinamento nessa cidade. Mas a pista não é aberta para todos, o que é estranho, mas deve ser por questões políticas locais. Somente quem esta hospedado no trainning camp da Lornah (High Altitude Train Centre) pode usar a pista, e desde que marque hora.

      Curtir

      • Danilo Balu disse:

        Pois é… no livro Running with the Kenyans dá a entender que NÃO há uma pista em Iten… Nairobi recebeu um Mundial de base da IAAF este ano, deve ter! Não duvido que tenham feito essa pista em Iten no meio tempo! E faz sentido que o acesso seja controlado lá e em Adis Abeba… exagerando, imagine abrir o Pacaembu pra todo mundo que quiser ser jogador de futebol….

        Curtir

      • Ciro, a pista que tinha visto era essa do trainning camp da Lornah mesmo… eu não sabia que só os hospedes poderiam usar, obrigado por compartilhar…
        O Ademir Paulino esteve por lá e lembrei que foi no Instagram dele que vi as fotos da pista. ( A declaração dos atletas a que me referi, não encontrei, não lembro onde li, ouvi…)… Abs

        Curtir

  2. Julio Cesar disse:

    Balu, mas qual era o nível deste grupo com o qual vc treinou ? Elite A de provas internacionais ? Elite B (como alguns que correm aqui no Brasil ) ? Aspirantes a atletas profissionais tentando impressionar um agente ? Ou amadores como eu e você ?

    Curtir

    • Danilo Balu disse:

      Tinha de tudo… cara com carrão porque ganhou prova gde gringa, e mulher que começou a correr há menos tempo, mas facilmente mete 1h24 na Meia. Os treinadores tb, tinha quem foi pro Mundial, quem tinha atleta que estava no Rio… Adis Abeba é a capital do atletismo no país.

      Curtir

  3. Rafael disse:

    Balu, eles treinam em pista de atletismo?

    Curtir

  4. Balu, sensacional os insights que você nos traz nesses textos de sua experiência na Etiópia. Meu pai se aposentou e passou a correr várias provas e quero mostrar todos esses textos pra ele. Pensando nisso, fica aqui uma sugestão para colocar entre as etiquetas/palavras-chaves algo como “etiópia”.. fica mais fácil para listar todos os textos dessa série. Valeu!!!

    Curtir

  5. Marcel Pracidelle disse:

    Tenho, pelo menos 2x na semana, feito as minhas rodagens mais leves na volta de grama do villa lobos… Levei um tombo outro dia, mas realmente desgasta menos. Mas acabo fazendo os leves lá, os fortes sempre faço no alfalto.

    Curtir

    • Danilo Balu disse:

      Lá eu nunca caí. No Ibirapuera já caí 2x. Na USP umas 4-5…. Faz parte.

      Curtir

      • Fausto Flor Carvalho disse:

        Eu já tive vários pequenos entorses em terra e grama….mas já vi uma moça cair num bueiro no meio de uma prova de rua….tudo na vida é arriscado… é uma questão de probabilidades

        Curtir

  6. Andre Berlesi disse:

    Qual é o clima de lá nessa época? Eles bebem água durante os longos? Somente água?

    Curtir

    • Danilo Balu disse:

      Me disseram que era a época mais fria do ano… nada de mais, mais tranquilo que SP. Levam água nos longos. Não vi mais nada além de uma bebida local fermentada que alguns bebiam depois do treino meio como lanche.

      Curtir

  7. Fausto Flor Carvalho disse:

    Eu procuro treinar sempre na grama ou na terra batida….tenho problemas com peso e nunca me lesionei treinando…pelo contrário as duas vezes que me machuquei foram por pequenos acidentes domésticos

    Curtir

  8. Wender( Astriba) disse:

    Valeu Balu pelo relato… Agora é reunir tudo num pequeno Livro.. Parabéns!!!!

    Curtir

  9. Mauricio disse:

    Realmente treinar em terra ou grama faz a diferença na integridade física de um corredor. Já treinei muito no asfalto, mas agora só corro na pista de cooper do Ibirapuera. Quando faço um treino no asfalto, o joelho reclama. Acho que essa preferência por treinar no asfalto, acontece muito pela falta de conhecimento. Quem deveria orientar sobre isso são os treinadores.

    Curtir

  10. jzflores disse:

    acho que essa bebida é a base de cevada, não cerveja. mais a matéria prima da mesma. não a nossa matéria prima, pq aqui bebemos trigo e soja (trasngêncio) mais no mundo civilizado, onde a produção é levada a serio, a cerveja é de qualidade, seja ela de cevada, trigo ou qualquer outra coisa.
    ainda tem gente que bebe ‘Ambev”e acha que segue recomendação medica.

    mais ao tópico, ja tinha reparado isso, ao menos pelos video que eles estão sempre em lugares de terra. sim, realmente faz uma puta diferença.
    hoje se corro três dia seguidos, no minhocão, fico com a sensação que minhas pernas foram atropeladas em camera lenta por um rolo compressor. uma dor do joelho até a panturrilha.

    Curtir

    • Danilo Balu disse:

      Acho que só o tempo ensina o estrago que o asfalto faz… Qdo era mais novo a idade compensava, agora não mais. Desde que voltei da Etiópia corri apenas um dia em asfalto e meu tendão doeu a tarde toda.

      Curtir

Duvido você deixar um comentário...

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.