Correndo com os Etíopes – parte 5: Vamos aos tiros!

Balu, amanhã saímos 5:45. O ônibus da equipe passa aqui e chegamos ao treino 6:15. Será treino de tiro”.

 

AGORA sim!

Eu seria quase um ingrato se dissesse que nos treinos leves não aprendi. Tive aulas que jamais poderia esperar. Mas correr lento é para qualquer um. Eu queria ver é como correm rápido os melhores do mundo.

 

Pontualmente 5:45 chega o ônibus. É necessário um certo salto de fé para chamá-lo de ônibus. Adis Abeba é repleta de um antigo modelo de caminhão russo dos anos 60 e 70 que foram reformados (diga-se soldados) para virar ônibus. Maior que um micro-ônibus convencional, menor do que um ônibus, parecido com uma grande Kombi ele encosta, subimos e sentamos com outros atletas que ocupavam todos os demais assentos.

Rapidamente saímos da cidade, não era longe. Chegamos e após descermos o treinador explica a todos sessão. Depois ele me traduziu no seu inglês: seria uma pirâmide e meia. Um tiro de 5 minutos, depois 4, 3, 3, 4, 5, 5, 4 e finalmente 3. Após cada uma das 9 repetições, 3 minutos de pausa em trote mentiroso. Era isso.

 

Porém antes, o aquecimento.

Em 20 minutos aquecendo na grama do acostamento da estrada chegaríamos ao verdadeiro local do treino. A viagem à Etiópia, é sempre honesto reforçar, parecia feita pelo meu inconsciente mais para reafirmar algumas crenças minhas antigas do que para observar novas. Como eu já esperava, eu conseguia sem dificuldades acompanhá-los no trote de aquecimento. Depois veio algo que eu havia lido em Running with the Kenyans: os africanos mudam de ritmo como um carro muda de marcha. Talvez após os 5 minutos o ritmo já era outro. Por volta dos 10 minutos eu deixei eles irem aos poucos. Nos 15 minutos, nem no meu melhor condicionamento da vida eu teria conseguido correr junto sem comprometer a sessão. Resumindo: eu descobria ali que a mudança de ritmo é outra obsessão. Você mal se deu conta e está mudando de ritmo constantemente, até aquecendo.

 

Dias atrás acabei de ler um dos mais legais livros de corrida que existe. Duel in the Sun conta a incrível batalha entre Alberto Salazar e Dick Beardsley no calor da Maratona de Boston em 1982. Em determinado trecho, Beardsley explica que seus treinos intervalados eram nos longos, quando ele fazia treinos de cerca de 30km com várias mudanças não-programadas de velocidade. Seu lendário treinador Bill Squires explica ainda como é falsa a impressão que maratona (no alto nível) é feita em velocidade de cruzeiro e não com mudanças seguidas e constantes de ritmo. O próprio secular Fartlek (brincar de correr em sueco) se baseia em seguidas alternâncias de ritmo que não são pré-determinadas.

O aquecimento etíope, conversei depois com o treinador (experiente, presente em mundiais pela seleção local) é assim, um crescente contínuo para que o atleta termine pronto para o que vem. É tudo tão lógico, certo? Errado. Acompanhe treinos de amadores e verá que o salto de intensidade é sempre enorme. As pessoas aquecem a 5´50”/km para dar tiros a 5´00”/km ou mais rápido. Não só é do ponto fisiológico pior, lhe carece algo específico: a mudança de velocidade que em menor grau acontece pelo menos a cada vez que seu pé toca o solo.

Chegamos ao local da sessão, o treinador repete o treino, os atletas tiram seus agasalhos e vai começar. Quando eu treinava na Irlanda os tiros eram em uma pista oficial de grama que parecia uma mesa de sinuca. Antes de pegar o ônibus me disseram que iríamos treinar em um gramado plano (flat grass). Quando cheguei lá vi outro salto de fé. Era um pasto com grama batendo quase no ossinho do tornozelo, buracos, esterco, bambus no chão e, como todo pasto, gado pastando. Inacreditável.

 

Eu não vou conseguir correr aqui

 

Preparaaaaaa… vai!!

 

Eu havia recebido antes a instrução: fique atrás daquela menina, ela é a mais lenta do grupo. Não a ultrapasse. Boa sorte.

 

Mais difícil que acompanhá-la era correr ali. Um terreno completamente irregular e pesado. Se você prestou atenção viu que eu não falei do percurso, apenas do terreno. Isso é o mais espantoso. Não há percurso, não há ritmo, não há trajeto nem picada! Os atletas correm em fila indiana com os líderes determinando o ritmo e a direção e, conforme eles abrem de você, você corta nas curvas e se junta novamente ao grupo. Você começa com todos, termina com todos.

Eu saí de lá sem saber a distância que eu corri nem o ritmo. Eu nem todos os demais. Mas veja bem, não precisávamos saber! Sabemos, sim, que fizemos 36 minutos em ritmo forte em um terreno que trabalha força e, como em todos os demais, propriocepção.

Ao final dos 3 minutos de trote, acabados, vem a surpresa: mais um tiro de 2 minutos. E aí, sim, fomos aos 15-20 minutos de calistênicos e alongamento dinâmico antes de um alongamento estático mentiroso conversando sobre o desempenho deles na competição de domingo.

 

Depois disso era hora de voltar ao ônibus e retornar à cidade.

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3 pensamentos sobre “Correndo com os Etíopes – parte 5: Vamos aos tiros!

  1. Andre Berlesi disse:

    Interessante que me parece que o volume destes treinos intensos são relativamente bem baixos… Isso acontece sempre ou somente em alguns treinos?

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  2. aleef456 disse:

    Quando li sobre o fortalecimento, me lembrei de uma sequencia de treinamento de fortalecimento que um treinador norte americano indica para seus atletas que curiosamente não possui estas danças, mas a base é a mesma. E por incrível que pareça, os atletas dele tá só empilhando troféu atrás de troféu. O que se mostra Balu, é que aqui no Brasil o negócio parece andar em camera lenta. Com pensamentos que remetem a década passada, que se vc chegar com um conceito novo, as pessoas irão ironizar de sua cara. Imagina tu fazer este método de treino aqui no Brasil que o cara tem que fazer este tipo de exercício e não precisa ficar suplementando feito um doido? E esta sequencia de desaquecimento por exemplo no Ibirapuera. UHAIHEIAH
    Recentemente ouvi um podcast que o entrevistado era o Fernando Nabuco e ele disse uma coisa que se no passado era novo ( época que a Gretchen não devia ter mais do que 16 anos), hoje parece ser mais novo. Em questões de treino, parece que estamos regredindo e não evoluindo. Você postou recentemente que nossas marcas só estão decaindo. Será mesmo que é por causa de estrutura?
    Belos textos cara, malz por comentar aqui, sendo que o tema é outro, mas o contexto é o mesmo.

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  3. aleef456 disse:

    Quando li sobre o fortalecimento, me lembrei de uma sequencia de treinamento de fortalecimento que um treinador norte americano indica para seus atletas que curiosamente não possui estas danças, mas a base é a mesma. E por incrível que pareça, os atletas dele tá só empilhando troféu atrás de troféu. O que se mostra Balu, é que aqui no Brasil o negócio parece andar em camera lenta. Com pensamentos que remetem a década passada, que se vc chegar com um conceito novo, as pessoas irão ironizar de sua cara. Imagina tu fazer este método de treino aqui no Brasil que o cara tem que fazer este tipo de exercício e não precisa ficar suplementando feito um doido? E esta sequencia de desaquecimento por exemplo no Ibirapuera. UHAIHEIAH
    Recentemente ouvi um podcast que o entrevistado era o Fernando Nabuco e ele disse uma coisa que se no passado era novo ( época que a Gretchen não devia ter mais do que 16 anos), hoje parece ser mais novo. Em questões de treino, parece que estamos regredindo e não evoluindo. Você postou recentemente que nossas marcas só estão decaindo. Será mesmo que é por causa de estrutura?
    Belos textos cara, malz por comentar aqui, sendo que o tema é outro, mas o contexto é o mesmo.

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