Correndo com os Etíopes – parte 4

Pouco depois de confirmar meu voo para a Etiópia resolvi uma mácula pessoal: fiz a leitura do ótimo Running with the Kenyans. O ser humano tem vários vícios. Um deles é recontar histórias de uma maneira suave, linear, ainda que para isso distorçamos a realidade. Isso porque nosso cérebro é preguiçoso, ele lida melhor com aquilo que ele entende (a simplicidade) e com aquilo que ele pode prever. Nem que para isso tenhamos que ignorar o não-compreendido ou fingir que ele simplesmente nem exista. Ganhamos assim uma falsa sensação de que entendemos perfeitamente os motivos das coisas acontecerem.

De certa forma era esse o desafio do autor no livro Running with the Kenyans. Ele queria saber se era o correr descalço que fazia dos quenianos os maiores vitoriosos em maratonas internacionais. Ou então a altitude, ou a pobreza ou a genética. Ele queria UMA resposta simples. Hoje parece estar bem claro que eles e os etíopes compartilham algumas características bem raras que os fazem os melhores fundistas do planeta em quantidade e qualidade.

Sem exagero, mesmo sendo um viciado no assunto, aprendi nos 2 primeiros treinos leves mais do que eu poderia jamais sonhar antes de embarcar para lá. Mas não terminei. Falei do nosso primeiro vício, outro deles é a busca de argumentos que confirmem aquilo com o qual concordamos. Poucas coisas são tão humanas.

E isso talvez tenha feito da viagem um aprendizado. Eu esperava que eles corressem com tênis surrados (e correm). Que eles focassem em muito volume (rodam como loucos). Ou que fossem desapegados com temas que entre amadores no Brasil, EUA e Europa viraram obsessões como nutrição e equipamentos (não ligam a mínima). Eu queria confirmar tudo isso em que eu sempre acreditei. E até confirmei. Mas era bem mais do que isso.

Tal como falei nos outros textos (aqui, aqui e aqui), a verdade é que eles correm diferente nos treinos leves. Na verdade eles correm, só que leve. Isso eu não esperava! Mas como o treino é em fila indiana, eu corria 100% do treino olhando a pisada à minha frente. É diferente sem conseguir explicar.

 

Todo corredor sabe que nosso esporte acontece no plano sagital, ou seja, naquele plano imaginário que separa o corpo em direita e esquerda. Porcamente traduzindo, a corrida acontece ou para frente ou para trás. Não há nada lateral, por exemplo. Mas já no primeiro desaquecimento houve uma ênfase nos planos transversos, por exemplo, que aqui eu só vi em atletas de modalidade como o futebol. Eles enxergam no quadril talvez a articulação mais importante da corrida. Isso é completamente, totalmente novo e surpreendente para mim.

Obviamente que sabendo minha opinião quanto ao alongamento estático você pode imaginar minha expectativa sobre o pós-treino, mas qual minha surpresa quando soube que por 15 minutos faríamos calistênicos, que são uma espécie de alongamento dinâmico, com uma ênfase na mobilidade e flexibilidade.

O alongamento como conhecemos e praticamos no Brasil em todas as sessões foi mínimo, ínfimo, muito curto. É muito mais uma sociabilização do que carga. E aqui voltamos à simplificação.

 

Regularmente saem nas revistas e portais de corrida os benefícios da cerveja (ou álcool) no esporte. Poucos sabem, mas fui Preparador Físico de um time de rúgbi de uma das maiores e melhores equipes irlandesas sub-20. Eu era ainda o Nutricionista. Na estreia do “Irlandesão” jogamos (e perdemos) fora de casa. No retorno o ônibus do time parou num pub e todos descemos. Sentamos em uma mesa e veio uma enorme quantidade de sanduíches. E cerveja, muita cerveja. Obviamente que eu não tinha nada a ver com aquilo. Era uma decisão do técnico seguindo uma espécie de tradição da modalidade. De nada serve querer avaliar se o álcool faz ou não bem ignorando o bem que essa social pós-jogo sabidamente faz.

Estudos interessantes mostram que o melhor do desaquecimento (ou pós-treino) nada tem a ver com fisiologia. Mas com a diminuição do estresse. Beber com amigos depois de um esforço físico pode sinalizar ao corpo que o estresse e a sessão estão terminados. Trotar com amigos depois dos tiros tem pouco a ver com lactato. Trotar sozinho pode trazer benefícios sabidamente limitadíssimos. Beber sozinho pode ser, sim, é um mau indicativo.

Falei tudo isso para lembrar que o alongamento estático mentiroso que alguns deles fazem ao final da corrida parecia ter um caráter puramente social. Mas os 15 minutos de calistênicos parecem, sim, explicar um pedaço da superioridade deles.

Se eu pudesse dizer em uma frase o que os faz melhores do que nós na corrida é que está bem claro a eles o que realmente importa na corrida. Mas isso é papo para outro post. O próximo vou é falar do primeiro treino intenso, de tiro! De novo muitas surpresas.

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8 pensamentos sobre “Correndo com os Etíopes – parte 4

  1. Antonio Bellas disse:

    Essa série está sensacional!
    Finalmente um observador profissional foi ver de perto o que esses monstros da corrida
    fazem.
    Como vc disse, o treco é multifatorial, mas com alguns pulos do gato e muita genética Boa
    Ansioso pelos próximos!

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  2. Balu, vc acha que os exercícios educativos de corrida podem fazer o papel desses calistenicos?? Eles tbm aquecem e alongam de forma dinâmica apesar de normalmente não serem tão longos na sua duração (no ocidente). Já vi vídeos de quenianos fazendo educativos por um longo período, na subida, algo bem semelhante à esses calistenicos dos etíopes… Abs

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    • Danilo Balu disse:

      Sou suspeito pra falar… há poucas evidências de que eles sirvam para alguma coisa na longa distância e são rotina na pista (saltos e velocidade). Ainda assim eu sou mto fã mesmo em amadores! Mas há uma gde diferença com esses calistênicos porque os educativos são em volume bem mais baixo. Há uma preocupação com a forma e a qualidade. Já os calistênicos por sua vez são feitos em volume bem mais alto. Basicamente estou querendo dizer que se aproximam em alguns aspectos, se distanciam em outros. São distintos.

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  3. Gilson Mariano Nery disse:

    Porque preferiu ir para a Etiópia ao invés de ir para o Quênia? Abração Balu.

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    • Danilo Balu disse:

      Porque logisticamente qdo vc vai pra Europa é mto mais fácil. Adis Abeba é um pto de conexão mto utilizado em voos para a Ásia e mesmo Europa. Fui para a Alemanha antes, fazer essa viagem pelo Quênia é mto fora de mão.

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  4. Fausto Flor Carvalho disse:

    Sensacional a série…queria saber se eles se fazem os treinos por distância, pelo tempo ou sem preocupação com isso.

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