Correndo com os Etíopes – Parte 2: Meu primeiro treino.

*depois de chegar ao país e adiarem em algumas horas a sessão de treino para que assistíssemos a uma corrida de rua de 7km, era hora de treinar!

Era para treinar em Adis Abeba com locais que eu tinha pego um voo de 6 horas de Frankfurt uma semana depois de correr minha 5ª maratona, a primeira na Europa. Era para ver o que os etíopes fazem que os deixam tão velozes quanto os… etíopes. Haveria algum segredo? Alguma metodologia secreta ou inovadora? Algo na dieta deles que seja tão diferente? Seria fugir de leões ou correr descalço até a escola na infância o método? E nos pés? Correriam eles descalços?

Para deixar as coisas bem claras: apesar de existirem leões na Etiópia, essa é uma piada feita com eles e quenianos que chega a ser ofensiva. É como dizer que pegamos ônibus sentados ao lado de macacos no Brasil e moramos em casas em árvores. Na Etiópia não são muitos os casos de corredores bem-sucedidos que cresceram correndo até a escola descalço. Haile Gebrselassie, o maior nome etíope global ao lado de Abebe Bikila, diz que fazia isso, mas esta parece ser uma anedota mais isolada e queniana que etíope.

Então deve ser algo no treinamento que os diferencia. Fosse a comida, bastaria copiarmos. Altitude fosse o segredo, isso faria de bolivianos e equatorianos potências globais nesse esporte. Não são sequer regionais, ainda que a marcha atlética, um evento que dura horas, seja um sucesso no segundo.

 

Bom, a primeira surpresa foi a caminho do treino. Era um misto de floresta, do tipo de Pinheiros, tão comum no Paraná com pasto de gado. Alto, é verdade, mas um geograficamente acidentado não muito diferente do que você encontra no interior paulista que conheço bem, por exemplo. Porém, o primeiro detalhe é como chegamos lá. Fomos de carro em um trajeto que não deveria ter 2km. Por que não ir trotando? Falarei mais disso depois.

 

O treino seriam 45 minutos leves rodando neste “pasto”. A primeira recomendação já quando trotávamos foi dada pelo meu guia (1h05 na Meia Maratona): você nunca deve ir (no treino) direto ao topo, pois isso tira a sua energia. A ideia era que rodássemos nesse pasto acidentado e terminássemos “lá em cima” os 45 minutos.

Os primeiros 3 minutos foram sufocantes, o pulmão puxa ar e, na raridade dos mais de 2.500m, ele não vem como de costume. A cidade de São Paulo fica entre 780m e 847m (Avenida Paulista). Campos do Jordão, fica a 1.600m. Sim, é mais difícil. Mas bem menos do que eu imaginava, mas é assim 24 horas por dia. Em 3 semanas seu corpo responde positivamente de uma forma difícil de explicar. Edward, o agente da equipe, por exemplo, bateu todas as suas marcas ao voltar de férias para seu país, a Inglaterra. Ele tem 1h18 na Meia de Londres (nível do mar), mas “apenas” 1h24 em Adis Abeba. Dois corredores que fazem um 1h18 e outro 1h24 nos 21km são de gavetas diferentes, não competem entre eles.

A altitude etíope é um doping natural e legalizado de EPO. Então quando você se alinha contra um etíope, já está em desvantagem. Porém, isto sozinho não explica, afinal, Ed treinou demais para bater todas as suas marcas.

Voltemos!

Começamos o treino sem nenhum tipo de aquecimento ou alongamento. Começamos a trotar leve (“vá atrás de mim”) em fila indiana, nada de lado a lado. A coisa é séria. 3 coisas me chamaram DEMAIS a atenção nestes 45 minutos de treino leve.

 

  1. A mudança constante, incansável de direção.

 

O local era um pasto grande, bastaria irmos usando mais do espaço. Mas não. Há uma constante mudança em zig-zag, com curvas de 90⁰ ou mais! É mais do que corrida. É uma musculação! Não corríamos em linha reta quase nunca. É difícil de explicar, mas mesmo sem usar as poucas picadas do local, era uma corrida usando todo o pasto.

 

  1. Uma mudança grande de ritmo

 

A corrida era leve, mas ela não é em ritmo constante. Obviamente que subir e descer implica em ritmos diferentes, mas estamos falando de cadência alternada, extensão de passada muito variada, velocidades bem diferentes. Não sei explicar, mas não é o tipo de corrida que você apenas desliga o cérebro e corre. Era uma corrida lenta, mas era corrida.

 

  1. Tempo de contato curto.

 

Em BH me apresentaram o termo “trote paquera”, já em SP os amigos chamam de “trote mentiroso”. Lá é uma corrida sempre ativa, tempo de contato curto, ainda que correndo lento. Treinamento esportivo é antes de tudo replicar e simular o que será usado na competição. Não adianta achar que você vai correr com tempo de contato de 1 décimo de segundo se no treino você faz corridas com 1 segundo de tempo de contato. Era uma corrida leve, mas reativa. Era corrida, ainda que lento.

 

Sai daquele treino com a certeza que eu nunca havia visto uma corrida tão reativa, tão alternada ainda que tão lenta. E essa era apenas a primeira sessão. E eles haviam me surpreendido desde o caminho ao treino.

 

Para não ficar muito longo, voltarei a falar mais dessa sessão no próximo texto (tem mais coisas, acreditem!). Mas na volta para casa uma coisa não saía da minha cabeça. No Brasil pagamos por uma comodidade e depois tentamos de forma bem precária compensar os benefícios que esse suposto conforto nos traz. O que estou dizendo é que a incrível mudança de direção é um fortalecimento específico que é impossível simular fora da corrida.

Está em voga um negócio no mercado que é a fisioterapia preventiva. Já disse uma vez, não consigo ver e não rir muito por dentro. É tudo tão bisonho. É um circo. O treinador da assessoria coloca algum brinquedo (um bosu, uma prancha de desequilíbrio ou um mini-trampolim) e pede ao aluno para fazer 2 ou 3 séries de 30 segundos. Como isso pode compensar você correr algumas vezes na semana uma corrida com mudança de direção por 45 minutos? Como?!

 

Amanhã continuo!

*não houve fotos, mas o vídeo desse treino coloco depois em outro post!

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12 pensamentos sobre “Correndo com os Etíopes – Parte 2: Meu primeiro treino.

  1. Balu, não sei quantos Posts ainda serão sobre esse tema mas acredito que seria um excelente material para um próximo livro… Eu compraria com certeza…. Abs

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  2. Alissandro Galvão Vieira Bitencourt disse:

    Muito bom Balu! Fico impressionado com sua visão e a forma fácil que vc a transmite no papel! Acredito que essa sua experiência será muito enriquecedora para todos nós! Obrigado

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  3. Marcos disse:

    Balu,
    Agradeço os relatos. Além da altitude, que não dá para reproduzir em qq lugar, parece que os pontos chaves desse treino são técnica e especificidade. Fazem educativos? Valeu!

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  4. Marcel Pracidelle disse:

    Como vc faz um tempo de contato rápido no solo estando lento? não consegui entender…

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    • Danilo Balu disse:

      Então… talvez eu não tenha sido mto claro… o contato rápido não é que seja mais rápido que em solos mais duros, mas é que ele não é tão mais lento qto em outras superfícies. É uma corrida mais picada do que um trote. O que mais percebi nesses treinos leves foi que a intensidade era mesmo mais baixa, mas o padrão do movimento era bem mais similar, mantendo uma cadência, mas com queda na amplitude de passada e nem tanto no tempo de contato.

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  5. Fausto Flor Carvalho disse:

    Fiquei na dúvida também….e não entendi muito a questão da mudança de direção… aguardando o vídeo pra entender…rsrsrs

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    • Danilo Balu disse:

      Infelizmente não vai ter vídeo disso… ou eu filmava ou eu caía no chão. Sério. Era um piso mto irregular pra filmar… Era uma fila indicana, no meio de um pasto cheio de árvores (não era uma floresta), era uma constante mudança de direção com curvas (algumas de 90o ou mais)… eram poucas retas de sei lá… 100m, por exemplo. Pra quem já correu na pista e cooper do Ibirapuera, por exemplo, é mais intenso que aquilo ali, que são 1500m cheio de curvas!

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  6. […] falei de parte da minha experiência em minha primeira sessão de treino na Etiópia. Nos 45 minutos leves de corrida em uma espécie de pasto bem acidentado a 2.400m de altitude com […]

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  7. Eduardo Filgueiras Senra disse:

    Além de extremamente inteligente, sua capacidade literária se destaca.
    O texto é envolvente e fica a ansiedade pelo próximo capítulo da série!

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  8. […] como falei nos outros textos (aqui, aqui e aqui), a verdade é que eles correm diferente nos treinos leves. Na verdade eles correm, só que […]

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  9. […] Etiópia, mas não dá para não passar por 2 dos aspectos que foram dos que mais me impactaram. Eu havia dito que antes do meu primeiro treino uma coisa me chamou atenção: mesmo estando a menos de 2km do local, nós fomos de carro e não trotando. Eu me sentia como […]

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