Quando PROCUSTO encontra o TREINADOR DE CORRIDA

Na mitologia grega, Procusto era um sádico que forçava peregrinos a passar uma noite em sua casa. Procusto, que significa “esticador”, aplicava um castigo em suas vítimas. Ele possuía uma cama de ferro que reservava para que viajantes dormissem nela. Porém, se os hóspedes de Procusto eram altos demais, ele então amputava suas pernas para ajustá-los ao tamanho do leito.

Já se o viajante era baixo demais, o mito grego o esticava até que ele atingisse o comprimento certo. Um detalhe é que a vítima inicialmente nunca se ajustava exatamente ao tamanho do leito, pois Procusto secretamente tinha duas camas de tamanhos diferentes.

Esse comportamento continuou até Procusto ser capturado por um herói ateniense que o prendeu em sua própria cama e cortou-lhe a cabeça e os pés, aplicando-lhe o mesmo suplício que infligia aos seus hóspedes.

Entre outras coisas, Procusto representaria a intolerância de nós humanos. Não é só isso. Esse mito já foi usado ao longo da história como metáfora para criticar e condenar tentativas de se impor um padrão arbitrário e estruturas pré-definidas em diversas áreas de atuação e conhecimento. A ideia desse igualitarismo, entre outras coisas, supõe que se deve forçar indivíduos a se enquadrar em padrões (pré) definidos por políticos, intelectuais e burocratas. Ela encontra terreno fértil em sociedades paternalistas como a nossa que determinam que o indivíduo não sabe muito bem o que é melhor para si mesmo.

whyyoushouldlisten-1_825Uma solução procusteana na atividade física é, por exemplo, primeiro definir arbitrariamente qual o modelo ideal e, por meio de leis e decretos, exigir que profissionais e seus clientes a sigam. Nesse modelo, não interessa se o cliente (que é quem quer ou precisa fazer atividade física) é alto ou baixo demais para a cama, burocratas (CREF, CONFEF, associações…) e educadores físicos corporativistas definem que é preciso esticar ou mutilar o indivíduo para que este caiba em seu modelo arbitrariamente pré-definido. O cliente é apenas um meio e um objeto para obterem aquilo que mais os interessa: o monopólio de cobrar dinheiro por um serviço.

O problema da solução procusteana é que ela não é do tipo ganha-ganha. Nela, para um (treinador) ganhar, um (cliente) TEM que necessariamente perder. E isso só muda podendo ser do tipo ganha-ganha quando não há padrão arbitrário e estruturas pré-definidas.

Dias atrás, mais uma vez a blogueira fitness mais famosa do país virou manchete porque os mesmos burocratas de sempre e os mesmos profissionais corporativistas de outrora saíram protestando contra um evento no qual ela participou orientando praticantes. Eles alegam uma falsa preocupação com um cliente que ele só quer, ainda que intrinsecamente, mutilar.

Sabemos bem o que os mesmos personagens de sempre mais queriam, mas eles alegam que atividade física:

Só deve ser orientada por profissionais formados;

Só deve ser orientada por profissionais credenciados (que “coincidentemente” pagam muito dinheiro ao CREF ou a outro lixo desses qualquer);

Deve ser individualizada;

Não deve ser à distância.

Ignoremos a questão do credenciamento. Uma vez formado, ser ou não credenciado não torna alguém mais apto, apenas libera um formado a trabalhar pagando um quinhão ao burocrata que, incompetente, se esconde atrás da estabilidade.

Ignoremos ainda, até porque isto é apenas uma heurística pessoal, que a quantidade de clientes parece ser inversamente proporcional à indignação do profissional corporativista. Nunca vejo treinador de assessoria muito grande reclamando. Provavelmente seu maior entendimento da realidade prática do mercado (menos provável) e a falta de tempo (mais provável) tire seu interesse do debate.

A questão nesse debate é que sempre que alguém (ou uma categoria) alega possuir a capacidade de gerar um benefício exclusivo, é ela quem deve provar que se faz necessária ou que é melhor. E isso na Educação Física (e no Esporte e na Corrida) e com o CREF simplesmente nunca foi feito.

Partir para o argumento de que a formação acadêmica oferece essa vantagem de competência é, usando o ótimo aforismo de Nassim Taleb, desconsiderar que ela está para o conhecimento assim como a prostituição está para o amor, em um momento apressado se assemelham, porém vistos de perto sabemos que não.

Enfim, sempre que burocratas e credenciados vierem com o mesmo hipócrita e falso argumento de que querem proteger o indivíduo, eles têm obrigação moral de provar que eles trazem mesmo um benefício até hoje nunca demonstrado. Sem essa evidência, fica cada vez mais claro que a preocupação é apenas com o nosso dinheiro, ou com a recuperação de um suposto investimento que fizeram em mensalidades de instituições privadas que não lhes garantiram uma reserva de mercado sempre conveniente.

E se ainda assim, os personagens de sempre argumentarem, com toda razão, que a lei não permite a um não-formado (ou um não-credenciado) a exercer a profissão, ainda que gerando benefícios aos clientes deles, nós apenas nos certificamos ainda mais que aos clientes (nós!) não querem promover a saúde, nós passamos com isso a apenas ser um meio e um objeto para obterem aquilo que mais os interessa: seu salário.

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22 pensamentos sobre “Quando PROCUSTO encontra o TREINADOR DE CORRIDA

  1. carlosfeoli disse:

    Não vou entrar no assunto da clausula de barreira…
    Mas o Procusto não seria um argumento pró individualização dos treinos? Logo, contrário à tua teoria da “receita de bolo”.

    ps. eu quase concordo contigo.

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    • Danilo Balu disse:

      Em partes… qdo eu falo em receita de bolo, no fundo no fundo ela tem uma certa individualização… qq treino de revista de corrida vc vai ver que ele pede que vc diga qto vc faz nos 10km, por exemplo… eu memso dou treino à distância! Os meus orientados me falam qto eles corremos 10km e 5km e baseado nisso eu monto o tempo dos tiros. Isso é individualizar? Não mesmo. No grosso eu dou a todos o mesmo tipo de treino. Acho que falei isso já…. é como eu ir na sua casa fazer um bolo e aproximar tudo com os utensílios que vc tem na sua cozinha. Treinador “só” precisa fazer isso.

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  2. Luis Oliveira disse:

    Balu, neste país em que todos tem a sua meia-entrada, seu pequeno curral, sua reserva de mercado, sua implicância com os profissionais de educação física chega a ser engraçado. Ninguém liga pra esses caras, ninguém dá a menor bola pro CREF.

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  3. Maicon Cunha disse:

    no brasil existe um excesso de regulação… parece que pra ter valor qualquer atividade tem que ser regulamentada, mesmo que a força… nao dão tempo ao tempo e subestimam a capacidade de julgamento das pessoas, não é só nesse caso… fico espantado quando ouço que mais uma ou outra profissão foi regulamentada e isso é comemorado, como se fosse a salvação da pátria… a lei salvadora, salva quem?

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    • Adolfo Neto disse:

      Não é só Brasil não.
      Mania importada talvez dos EUA.
      Vai tentar ser médico nos EUA…

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      • Danilo Balu disse:

        Só pra que fique claro, não sou contra exigência de formação… acho interessante uma regulamentação de profissões que pela história ou pelo tempo se mostrem úteis (ou que ameacem) à sociedade como Engenharia, Medicina… de resto por que eu não posso buscar um cara pra tratar meus dentes? Por que tenho que buscar um educador físico formado pra me ensinar a nadar? Isso é delírio.

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  4. Walter Santos Filho disse:

    Até pouco tempo atrás eu compartilhava da tese de que profissões com potencial de dano para a sociedade, caso exercidas sem a comprovação devida, deviam ser regulamentadas. Após ler o artigo do André Luiz – http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2011 – e de ver a lista de profissões atualmente regulamentadas no Brasil me parece que a busca da reserva de mercado é mais forte que a disposição de competir livremente. Hoje revejo até mesmo esse conceito. Porque eu, como cidadão, não posso consultar com qualquer charlatão que eu encontre por aí? Ou, quantas vezes eu chequei as credenciais de um profissional que contratei. No final, a regulamentação mais cega do que esclarece.

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    • Danilo Balu disse:

      Eu acho que há profissões que a história e o tempo nos mostrou que sevem para algo, como engenheiros, médicos, advogados… qq coisa que tenha menos de um século não se mostra assim tão essencial que tenha que ter diplomas.

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      • Débora disse:

        Olha, advogados não… Te pergunto, imagine uma pessoa com anos de experiência no Fórum, que sabe como funciona todo o processo, mas não é formada em Direito. Quem você prefere contratar, essa pessoa ou um recém formado sem experiência alguma? Não deveria ser sua a escolha?

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      • Danilo Balu disse:

        Nos EUA é, né?

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      • Nishi disse:

        Advogados? Dizem que prova da OAB é uma forma de tentar preservar um nível mínimo de qualificação profissional. Dizem. Mas, enfim, acredita quem quer.

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    • Danilo Balu disse:

      Cara que texto bacana, hein?!

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      • Walter Santos Filho disse:

        Eu estava pesquisando sobre profissões regulamentadas enquanto lia seu texto e só me deparava com questões relativas à CLT mas sem uma opinião. Até que encontrei este texto, do mesmo site no qual já li alguns outros sobre liberalismo e livre concorrência. Legal que gostou!

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      • Adolfo Neto disse:

        Lembrou-me deste comentário aqui
        https://twitter.com/adolfont3/status/830444160259874818

        “Quem gosta de livre mercado é adolescente que começou a tomar gosto por economia. Empresário gosta é de protecionismo, lobby e contratos com o governo.”

        Vale para profissionais, para empresários. Do Brasil, do mundo.

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  5. Adolfo Neto disse:

    Sobre o trecho

    “Partir para o argumento de que a formação acadêmica oferece essa vantagem de competência é, usando o ótimo aforismo de Nassim Taleb, desconsiderar que ela está para o conhecimento assim como a prostituição está para o amor, em um momento apressado se assemelham, porém vistos de perto sabemos que não.”

    Sempre enxergei este aforisma do Taleb como uma crítica à Academia, isto é, aos professores universitários que fazem ciência e suas estruturas (revistas com peer review, eventos, valorização de títulos, etc). Não como uma crítica à formação acadêmica (que ele também critica quando o objetivo é apenas um diploma.

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  6. Débora disse:

    Concordo demais! Muito embora eu adore ver blogueira se fudendo, o fato de que é necessário um “selo do rei” para condução das atividades é irritante. Até mesmo na minha área, é ridículo precisar de OAB pra ser advogado. Gente, esse paternalismo útil do Estado é fo-da.

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  7. Angelo Guimarães disse:

    Também concordo! Não sei nem para que existe certidão de nascimento, CPF, RG…cada um deve ter o direito de fazer o que quiser. Por que eu tenho que ter só um nome? por que tenho que ter algo que registre minha idade? Por que não ter direito que montar uma planilha de treino à distancia para uma pessoa?

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