Correr é o esporte olímpico mais simples que existe. Até a marcha atlética tem mais regras. De crianças a idosos, de humanos a animais, o aparelho locomotor assim permitindo, sem habilitação nem aulas especiais, o indivíduo querendo ou precisando, ele corre. Correr como esporte é tão antigo que já estava nos Jogos Olímpicos da Antiguidade.
Isso nos traz a 2 pontos. O primeiro é que por ser tão antigo, não dá para reinventá-lo facilmente. Quase tudo já foi testado e retestado. O que funcionou foi ficando e sendo aprimorado. Os tiros que você dá hoje nos treinos já existiam na primeira metade do século passado. Os longos? Vêm de antes disso! O que não deu certo também já foi muito avaliado e assim foi sendo abandonado.
E o outro ponto é que essa simplicidade inerente à corrida faz com que para vendê-la, vale a pena rebuscá-la, dar a ela um ar de complexidade que sabemos ser falso, usam um discurso de que é necessário muito cuidado e detalhes; tão somente porque isso agrega valor ao serviço de quem vive dela. É do jogo em muitos outros campos, ninguém precisa se escandalizar ou ser crucificado por isso. Acredita e compra apenas quem quer.
No Brasil há uma ênfase maluca em defesa do individualismo na corrida. Todo mundo quer correr ao lado dos amigos de assessoria no parque, mas desde que cada um tenha a SUA planilha com volumes, FCs e intensidades próprias, individuais, exclusivas, únicas. Querem ser únicos, mas desde que todos juntos. Não sei se eles realmente acreditam que uma assessoria com mais de meia dúzia de alunos realmente consiga oferecer esse treinamento individualizado sem virar uma ONG. Como ex-sócio de uma que chegou a ter mais de 400 alunos, eu falo com segurança: não, ninguém faz.
Estou eu confessando um pecado? Eu não! Não há como reinventar a roda. É humanamente impossível que para cada novo aluno você recomece do zero. Sendo assim, TODO TREINADOR DÁ TREINO QUE EM SUA ESSÊNCIA É UMA RECEITA DE BOLO. E reforço: isso não é errado!
Isso porque o treinamento nada mais é do que você aplicar uma sequência de cargas que você sabe funcionar para determinada atividade.
Nos EUA, país que corre muito mais (em volume e intensidade) do que nós, fazem sucesso os livros de treinamento do tipo “leia, siga o modelo e corra para o abraço”. Sites existem às dezenas oferecendo treino onde você coloca meia dúzia de informações e um algoritmo calcula tudo. É uma receita de bolo na veia. Se matasse ou fizesse mal, estariam condenados. Faz sucesso JUSTAMENTE porque a técnica da receita de bolo funciona!
Já na Europa, como disse tempo atrás aqui, na Irlanda, Reino Unido e tantos outros países por lá, nos treinos dos running clubs (as assessorias deles), você alinha na sessão de treino e todos – TODOS – fazem o mesmo treino. Mesma distância, mesmo número de repetições, sem controle de FC e mesma pausa. Os mais rápidos vão abrindo. Você corre junto de gente mais fraca (melhor para esses) e faz força para correr com os mais velozes que você (bom para você). Nas rodagens vão todos com o mesmo volume, cada um na pegada que lhe cabe.
No Quênia, vale a lei do mais forte. Não tem treino individual, FC, nada. Um atleta experiente sem formação nenhuma chega, anuncia o treino e vai todo mundo junto até não aguentar mais. Os melhores correm mais forte, mas todos vão juntos até onde der para cada um deles. E vão caindo um a um.
A história que “planilha não é receita de bolo e tem que ser individualizada” é conversa para boi dormir. Isso porque essa afirmação parte mais do que do princípio da individualidade biológica. O clube que eu treinava em Dublin tem mais de 100 anos. Vai dizer que essa gente não tem experiência?? Essa argumentação da individualização defende que essas planilhas são únicas, vão dosar as necessidades do atleta, evitam desgaste, maximizam a recuperação e a melhora do desempenho.
Daí não só voltamos à história de que é humanamente impossível sair do zero para cada novo atleta, como caímos em outro equívoco conceitual que é o do controle das variáveis. Ninguém as tem. Sinto muito. Ninguém. Absolutamente ninguém. Nem a fisiologia, nem a experiência. Esta, aliás, por si só acabaria com o papo de necessidade de formação técnica, uma vez que experiência qualquer um pode ter sem estudar.
O treinador que fala que com dados (quaisquer que sejam eles!) assim possui controle, tropeça em duas mentiras: ou uma que ele conta para o cliente, ou outra que ele conta para si mesmo, acreditando que consegue decifrar o desfecho de N variáveis, algo que não consegue.
Por isso que eu termino dizendo: treino é receita de bolo SIM, TEM que ser e não há mal NENHUM nisso. Livro, sites, revistas e programas de treinamento estão aí há décadas mostrando que funcionam bem demais.
Correr longa distância é um pé atrás do outro com paciência, regularidade e por muito tempo. Planilha individualizada na casa depois da vírgula é espuma. E vale bem menos do que pesa.
É bom deixar claro (se bem que seus leitores sabem, mas gostaria de ter lido no texto, para poder repassá-lo) que no Quênia o objetivo NÃO é saúde. O objetivo é ganhar dinheiro. Portanto, o quanto antes você descobrir que “não dá para a coisa” (isto é, que não vai ser um corredor melhor do que a maioria) melhor.
Minha experiência nos EUA foi bem diferente da sua na Irlanda (e você já sabe pois já escrevi aqui). Quase ninguém que conheci tinha treinador. E mesmo treinos em grupos eram bem individualizados. Não individualizados no mau sentido, em que alguém diz para você. Mas individualizados no seguinte sentido: as pessoas se encontravam num bar e o líder do grupo dizia: daqui a 1h a gente se encontra aqui, ok? E cada um corria a distância que queria, no tempo que queria. Alguns passavam um pouco de 1h, outros terminavam antes. Alguns faziam 5K, outros 8K.
Claro, isto foi um dos grupos de que participei: este http://ncroadrunners.org/.
Tinha outro bem diferente que fazia treinos em pista http://www.carolinagodiva.org/ Não cheguei a ir num dos treinos deles.
Enfim, acho que se o objetivo for saúde, tem que ser individualizado pela própria pessoa. Mas a pessoa só aprende o que fazer depois de um tempo seguindo receita de bolo.
CurtirCurtir
Mto bom! Individualizado pela própria pessoa!
Os running clubs americanos que tem galera correndo mais com espírito como aqui nas assessorias brasileiras, pensando em uma prova X, por exemplo, o espírito é mais como a Irlanda…
CurtirCurtir
A melhor informação que tirei deste post não está nele.
Fui atrás da sua afirmação sobre as Olimpíadas da Antiguidade.
Nas Olimpíadas da Antiguidade, a corrida mais longa era, segundo a WIkpédia, de aproximadamente 4 quilômetros!
“Other running events included a two-stade race, and the Dolichos, which was a long-distance race that was 20 or 24 stades long, or about two and a half miles.”
https://en.wikipedia.org/wiki/Running_in_Ancient_Greece#Early_Olympic_Games
10K é anormal.
21K é anormal.
Maratona e ultra, nem pensar.
Quem faria uma maratona só como treino, sem pensar numa prova?
CurtirCurtir
conheço muita gente faz treino de 50km, 60km.
Acredito que o corpo se adapte e acho muito mais difícil, uma prova de 4km do que uma prova de 21km
CurtirCurtir
É como diz o Balu: Ultramaratona não é esporte, é teimosia.
Fico com preguiça só de pensar em alguém correndo (na maioria das vezes trotand) durante 50 km ou 60 km ou essas ultras no meio do mato com mais de 100 km, a estas últimas eu chamo de passeio no mato.
CurtirCurtir
Rafael,
>> conheço muita gente faz treino de 50km, 60km.
Mas é gente que nunca participa de prova?
>> Acredito que o corpo se adapte
Conhece foot binding (https://en.wikipedia.org/wiki/Foot_binding)? Ou as mulheres-girafa?
O corpo se adapta a cada coisa estranha…
>> Acho muito mais difícil, uma prova de 4km do que uma prova de 21km
Como assim uma prova de 4Km é mais difícil do que uma de 21Km? Você está falando isso porque as pessoas tendem a fazer 4Km numa intensidade bem maior do que fazem 4Km, certo?
E se você fizer a prova de 4Km no ritmo em que faz a de 21Km, qual é a mais difícil?
Adolfo
CurtirCurtir
Adolfo, é um grupo que gosta de se reunir nas montanhas e correr, todo o fim de semana.
Acredito que não seja somente um sofrimento (um pouco com certeza é), pois é o momento de lazer deles.
Pessoalmente, acho difícil uma corrida ser boa depois de 2h30,mas até esse tempo, acho que sim, (desde que as reservas de glicogênios, estejam lá)
Sobre provas curtas, eu falei sobre a intensidade. Numa prova de 21km, não é possível correr com o coração no limite.
CurtirCurtir
eai danilo poderia mandar esses sites com treinos “prontos” para que eu possa dar uma olhada, pois nao consegui encontrar mta coisa sem ser paga.
CurtirCurtir
O Mark Cucuzzella tinha uns ótimos mas foram removidos.
As instruções estão aqui:
http://www.militarytimes.com/story/military/pt365/2014/10/20/pt365-run-plans-marathon-race-tips-run-it-like-a-hybrid-car-from-lt-col-dr-mark-cucuzzella/32124591/
http://www.militarytimes.com/story/military/pt365/2014/06/13/pt365-run-plans-elements-of-efficient-running-part-1/32125555/
E os planos estavam em
https://web.archive.org/web/20140910050616/http://blogs.militarytimes.com/pt365/pt365-run-plan/
Talvez esteja em outro lugar.
CurtirCurtir
[…] sobre o texto que falo que treinamento de corrida é receita de bolo, ouvi algo que me faz voltar ao assunto. Disseram que meu texto estaria errado porque os corredores […]
CurtirCurtir
Quer dizer então que posso estrear em maratona sem treinador? Sem assessoria? Só seguindo receita de bolo? kkk. To brincando, sei que em outros paises isso é normal… mas aqui parece um bixo de 7 cabeças
CurtirCurtir
[…] hoje na corrida é algo novo, pensado inovador, moderno e calculado. Quando disse tempo atrás que treinamento em corrida era receita de bolo, um dos meus pontos era que não se faz nada hoje que não se faz há muito tempo. Corrida não é […]
CurtirCurtir
[…] das coisas que mais ouvi, no sentido de crítica mesmo, quando falei tempo atrás que treino de corrida é tão fácil que é receita de bolo (e que isso não é ruim por si só) é que não seria verdade porque os treinadores podem […]
CurtirCurtir
[…] dia pretendo voltar mais ao tema que o treinamento de corrida é tão simples que é uma enorme receita de bolo (e isso não é ruim!). Basicamente, corrida em provas acima de 5km é sobre […]
CurtirCurtir
Balu seu texto me fez lembrar a questão da respiração. Já vi no Youtube algumas pessoas explicando como “respirar”. Eu, por exemplo, sofro de rinite alérgica, o que praticamente faz com que eu tenha que me adaptar à essa enfermidade enquanto pratico esportes. Bem, seu blog é muito bom. Já foi assinado e já tá nos favoritos. Grande 2017 a todos!
CurtirCurtir