Uma Ode ao progressivo. Ou sobre nossa memória curta.

Nos treinos na pista, um cuidado que sempre tínhamos (principalmente quando era atleta, porque depois que virei também treinador acho que fui perdendo um pouco desse “sangue nos olhos”, mas não é exatamente só por isso e depois me explico…) era o de fazer a repetição final a mais rápida dentre todas. Se fosse progressivo, melhor ainda!

Basicamente, se não conseguíssemos esse último tiro bem, é como se os 8×1.000m tivessem dado errado, não importando a média. Por vezes chegamos a aumentar 1 tiro só para “corrigir” um vacilo. Lembrando agora, lembro que essa última repetição era quase uma briga de rua, um risca-faca, uma demarcação de território. Era ali que você dava um aviso ao seu amigo de treino que no dia da competição, quando vocês seriam adversários, o Ki-Suco ia ferver para o lado dele.

Esse aspecto psicológico parece bem claro, você quer terminar o treino confiante, testar a si mesmo, arrancar elogios de atletas e treinador. Eu sei, é muito macho-thing! Já pelo lado fisiológico, esse sprint na repetição final faz todo o sentido, afinal, as provas mais curtas (5km e 10km) são decididas se acelerando no final. Um treino crescente simula e replica o que você sente na prova, ou seja, tem que acelerar justamente quando está mais cansado, treinos assim te ensinam a suportar o desconforto e coordenar as pernas quando o ácido lático mais atrapalha. Mas um texto ótimo do Steve Magness vem jogar mais luz em algo que nunca tinha pensado.
Magness se mostra cada vez mais um grande fã de Economia Comportamental (ele lê Nassim Taleb… chorem, haters!). Ele diz que ao terminarmos o treino dessa maneira, estamos apenas resolvendo uma certa necessidade que temos de preencher nossas memórias que insistem em se apegar ao recente.

crescendo-

Você faz 7 tiros de 1.000m e acha mesmo que a coisa só funciona se o último sair a contento. Faz sentido? E quem disse que precisa haver sentido? Do ponto de vista racional, nada mais irracional do que querer correr mais rápido ou mais longe. Quando você estuda treinamento, você acaba “descobrindo” que o treino não precisa ser progressivo para ser fisiologicamente bom, e quando passei a ler muito mais, descobri que meus últimos tiros não precisavam mais ser os mais rápidos, nem mesmo serem feitos, pois o estímulo já havia sido dado! A velocidade caiu muito? Abandone o treino. E aí entra o dilema de ter experiência para discernir quando isso é preguiça ou sabedoria.

Mas corrida é também sobre cabeça. Eu sempre digo que nossa memória é péssima! Somos horrorosos tentando recordar fidedignamente as coisas. Os tolos e excessivamente confiantes caem repetidamente nesse equívoco. Então, terminar assim bem um treino pode ajudar muito não só fisiologicamente, mas também na motivação e confiança do atleta. Pode parecer simples e lógico tudo isso o que ele escreveu (tudo é mais simples depois que alguém vem e nos mostra), mas gosto de frisar aos orientados uma coisa: a partir do dia que você abandonar uma prova (ou um treino nas repetições finais), justamente quando há terrível desconforto, você vai passar a se questionar sempre se não deveria fazer isso novamente.

Corrida quando falamos em desempenho é basicamente sobre paciência e tolerar o desconforto. E quando aguentamos o tranco nos tiros finais, isso nos dá muita confiança, ainda que não mude uma vírgula na fisiologia.

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12 pensamentos sobre “Uma Ode ao progressivo. Ou sobre nossa memória curta.

  1. Daniel disse:

    Mais um belo texto

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  2. Nishi disse:

    “a partir do dia que você abandonar uma prova (ou um treino nas repetições finais), justamente quando há terrível desconforto, você vai passar a se questionar sempre se não deveria fazer isso novamente”. Sim!!!

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  3. Enio Augusto disse:

    É bem isso. Se não faço o último tiro mais rápido, parece que faltou algo. É quase uma questão de honra. E quando eles saem progressivo, cada vez fica pior. É um bom desafio para ir cada vez mais rápido quando se está mais cansado. Mentalmente é muito bom.

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  4. Ralph disse:

    Muito bom….gostei muiro !

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  5. martinhovneto disse:

    Belo texto, vivi essa falta de treino progressivo e sprint no final domingo agora na track and field, corri ao lado do colega a prova toda e nos últimos 500m o cara me matou em um sprint que eu não consegui acompanhar.

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  6. Julio Cesar Kujavski disse:

    Na planilha que estou seguindo os tiros mais curtos sempre são no final. O treino sempre começa com tiros de 1.200 ou 800 e os últimos são de 200. E tem treinos que pedem 4 retas de 100 mt ao final dos tiros.

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      • Tiro de 400 depois de 3 x 1.200 desanima só de pensar, mas na hora acaba saindo e no final a gente fica mais confiante. E faz bastante sentido na preparação para provas de 5 km.
        Pra maratonistas ainda acho que os tiros devem ser no mesmo ritmo do primeiro aó último. Um maratonista (amador) não precisa acelerar nos últimos km, precisa aguentar.

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    • Danilo Balu disse:

      Concordo! Por isso frisei 5km e 10km….

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      • Julio Cesar Kujavski disse:

        O cardápio de hoje é:

        2×1.200: 4´30″
        2×800: 3´05″
        2×400: 1´30″
        2×200: 38″

        Na rua e na chuva, pois quando chove não posso usar a pista.

        Pensando bem, isso não faz o menor sentido. Quem sai na chuva pra correr, fazer um monte de tiro com ritmo difícil e ainda fica feliz no final ? Isso não é normal….rsrs…

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  7. luis mello disse:

    Tem uma sobre tiros que acho interessante: se depois do último tiro o treinador lhe pedir para fazer mais um, você até faz, mas a contragosto. Se pedir mais dois, você manda ele longe…

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  8. O que mais me incomodou quando reformaram a pista do Bolão, aqui em Jundiaí, deixando-a sintética é que, daí, não dava mais para pegar a pedra e marcar no saibro quantos repetições íamos fazendo… daí, cortaram as árvores e nem graveto tinha mais. Nem pedras. Até trocar de cronômetro (que marca os laps), era um tal de esquecer quantas repetições já tinha feito… na prática, sou a prova que lembramos do mais recente mesmo!!!!! Agora, psicologicamente, esse último mais rápido tem de sair sempre… Lógica? Nenhuma. Para cabeça? Claro.

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