Sobre Nutrição e Falácias – parte 2

OU SOBRE A FALÁCIA DO BALANÇO CALÓRICO

Ontem falei que a Nutrição erra desde a sua saída, ao definir (ou não entender) o que causa o sobrepeso. Ou seja, desde o princípio ela já está errada. Sem saber disso, ela parte para a ideia do balanço calórico para combatê-lo. Mas a tese do balanço energético deve ter algum fundamento, certo? Seria uma boa ideia?

Uma relação que poucos tentariam negar é o do consumo de calorias com obesidade. E ela é tão forte que estatísticas simples poderiam mostrar e comprovar. No entanto, o estatístico Nate Silver em seu belo livro “O Sinal e o Ruído, usando dados de 84 países que disponibilizam os valores de consumo calórico, descobriu que a associação entre elas não é assim tão clara. Ela é apenas “tênue”. Países como a Coreia do Sul ou Nauru (pequena ilha na Oceania) mesmo com o mesmo consumo energético e apenas um pouco acima da média mundial, apresentam índices de obesidade contrastantes (3% versus 79%). O gráfico abaixo obtido aponta evidências apenas limitadas da relação consumo calórico e obesidade, ou ainda nas palavras do próprio autor sobre aquela que é uma regra fundamental para nutricionistas e médicos adeptos da ideia do balanço calórico: parece haver indícios restritos para uma associação entre obesidade e consumo calórico; pelos testes padrão, tal relação não seria qualificada como “estatisticamente significativa”.

nate silver calorias x obesidade

A relação calorias e obesidade não pode ser qualificada como “estatisticamente significativa”.

Pois um dos grandes desafios de argumentar que os carboidratos (e não a gordura) são um dos maiores responsáveis pela obesidade mundial é a equivocada e enraizada ideia desse balanço como o maior e principal regulador de nosso peso. A ideia entre outras coisas parte do pressuposto de que “todas as calorias são iguais“, afinal, o que importa é o balanço ao final do dia, tal qual o saldo bancário de um indivíduo. Mas isso teria que nos fazer crer que 100 calorias de refrigerante seriam como 100 calorias de um legume, por exemplo. Assim acaba-se por reforçar que obesidade é simplesmente apenas uma consequência de comer demasiadamente por gula ou se movimentar de menos por preguiça.

Não deixa de ser um tanto ingênuo imaginar que nosso organismo e sua intrincadíssima rede de reações bioquímicas lidaria do mesmo jeito com calorias vindas de um pão ou de carne ou de uísque. Ou ainda, por uma lógica simples demais para ser crível, assumir que a gordura ou colesterol circulantes no nosso sangue, sejam resultado direto da gordura saturada na dieta.

Na verdade a ideia de que a obesidade é uma questão matemática e de balanço calórico nem sempre foi central. Até antes da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), muitos pesquisadores europeus acreditavam que a obesidade era uma desordem regulatória de causa hormonal. Em uma recapitulação cuidadosamente feita e investigada por Gary Taubes em seu livro “Good Calories, Bad Calories”, temos recontada as ideias do médico alemão Gustav von Bergmann que explicava no início do século passado (1908) que nós comemos demais porque e quando estamos ficando gordos. Gustav von Bergmann desmistificava o raciocínio do sobrepeso como tendo o desbalanço energético como causa, e não consequência. Bergmann chamava a causa da obesidade como sendo uma desordem metabólica à qual deu o nome de “lipophilia” ou “love of fat” (amor da gordura, em tradução livre). Suas teorias, porém, foram depois ignoradas.

Um dos maiores livros de Nutrição das últimas décadas é ignorado desde a Graduação.

Um dos maiores livros de Nutrição das últimas décadas é ignorado desde a Graduação.

Não foram apenas as ideias dele que parecem ter se perdido no tempo. Em 1864, William Banting publicou Letter On Corpulence, Addressed to the Public. Sua dieta explicada na obra acabou virando verbete na Nutrição e foi muito recomendada por médicos até a metade do século passado. O autor perdeu quase 40kg em uma dieta rica em gordura e restrição de carboidrato. Porém, o The British Medical Journal e o Lancet publicaram uma resposta dizendo que tal dieta poderia ser perigosa. Na verdade, tal qual muitos comentários que recebi, não foram muito gentis, eles aconselhavam Banting e “todos os seus a não se meter com literatura médica novamente, e ir cuidar de sua própria vida”.Ou seja, como muitos órgãos e nutricionistas hoje ainda fazem, eles criticavam e rechaçavam a ideia de restrição de carboidrato e alto consumo de gordura sem sequer entender as ideias e a sua segurança. É difícil criticar o tom da resposta com a falta de evidências que havia no longínquo ano de 1863, mas é inaceitável órgãos de saúde e Nutricionistas fazerem o mesmo nos dias de hoje com o vasto material produzido e à disposição de todos. *falarei ainda da segurança do consumo de gordura em outro post.

Depois de Gustav von Bergmann, já em 1951, foi publicado por 7 respeitados clínicos britânicos o The Practise of Endocrinology. As recomendações nele eram muito parecidas com as de William Banting em 1864, ou seja, as comidas a serem evitadas eram: pães e tudo feito com farinha de trigo, cereais, cereais matinais, pudins, batatas e quaisquer outros vegetais e tubérculos que contenham açúcar e todo tipo de doce.

Depois deles, em 1957, ainda veio Hilde Bruch, autoridade e especialista em obesidade infantil que escreveu: um grande progresso no controle da obesidade pela dieta foi o reconhecimento de que a carne não é engordativa, mas que pães e doces é que causam a obesidade.

Ou seja, para esses o problema não era uma questão de quanto, mas do quê comer. Pois se a questão do ganho (ou perda) de peso é apenas uma questão numérica, de quantas calorias ingerimos e não da composição daquilo que comemos, a ingestão calórica exagerada ainda que por poucas semanas deveria dar suporte à crença da teoria do balanço energético. Questionando essa lógica citada amplamente em órgãos de saúde, Sam Feltham fez um curto experimento pessoal sem validade científica. Por 3 semanas ele ingeriu diariamente uma média de 5.794 calorias com uma restrição tal de carboidratos que totalizou apenas 10% dessa energia consumida. Se a tese do balanço calórico fosse 100% válida, Feltham deveria ter engordado 7,5kg, mas ele ganhou apenas 1,7kg.

Essa diferença levanta uma hipótese: será que nosso corpo não pode alterar seu gasto energético? Durante o experimento é bem provável que seu gasto tenha se elevado explicando seu ganho de peso bem abaixo do esperado na teoria matemática do déficit calórico. E o que sugere ainda outro estudo do JAMA que examinou 21 sujeitos com sobrepeso ou obesidade comparando não só a perda de peso entre dietas com restrição de gordura com as restringindo carboidrato e também seu gasto energético. Mesmo consumindo a mesma quantidade calórica, a dieta com restrição de carboidrato gerou um aumento no gasto diário de 325 calorias por dia.

O inverso também acontece, se você entrar em jejum objetivando perda de gordura, você não perderá peso de forma equivalente ao desbalanço calórico. Ou seja, um indivíduo que “necessite” 2.500 calorias, em jejum de 2 dias não terá perdido o equivalente a 5.000 calorias porque o corpo irá reduzir seu metabolismo.

Porém, ingerir grandes quantidades de carboidrato simples parece interferir justamente no balanço hormonal. Essa ingestão irá aumentar a produção do hormônio insulina. Um exemplo que ficou mundialmente popular foi retratado num filme anos atrás. Em “A Dieta do Palhaço” (Super Size Me), o diretor Morgan Spurlock também fez um auto-experimento e também sem validade científica. Ele ingeriu cerca de 5.000 calorias diariamente na mais famosa rede de fast-food do mundo por 30 dias seguidos. Ao contrário de Feltham, o diretor não comeu uma dieta de baixa ingestão de carboidratos, mas sim uma dieta rica em carboidratos refinados e gorduras. Ao contrário do outro experimento, Spurlock ganhou mais de 11kg.

Esse ganho pode ter uma explicação simples. Um estudo de 2004 sugere que a qualidade (ou tipo) da dieta muito importa porque mesmo em uma dieta hipocalórica, ratos submetidos a uma alimentação de alto Índice Glicêmico (IG) engordaram rapidamente. Eles ganharam cerca de 71% de gordura a mais do que os outros ratos que comeram mais calorias, só que através de carboidratos de menor IG.

O ser humano tem obsessão por ter controle das coisas. O Nutricionista aprende ainda na faculdade a calcular o valor calórico de uma dieta e o gasto do seu cliente. É nossa tara tão humana de estar no controle. Só que há um porém: a Nutrição é péssima nesses cálculos. Vejamos as consequências quando o Nutricionista insiste no balanço calórico por achar que vai conseguir calcular os valores…

Do ponto de vista termodinâmico, ninguém nega que 100 calorias de alimento, não importa sua origem, se proteína, gordura, ou carboidrato, libere a mesma energia em um teste laboratorial. Inclusive a primeira publicação conhecida da definição de caloria foi em 1825 no jornal francês Journal de l’Industrie, des Sciences et des Beaux-Arts. Porém, as leis termodinâmicas que o próprio pesquisador Clément-Desormes propôs à época não se aplicam necessariamente ao organismo humano. Independente disso, ela continua sendo usada pelos nutricionistas como uma das bases.

A obsessão por calorias nos fez perder de foco a razão do sobrepeso

A obsessão por calorias nos fez perder de foco a razão do sobrepeso

Bom, é praticamente impossível de forma acurada e precisa calcular quantas calorias há também nos alimentos mesmo fazendo uso de instrumentação muito precisa. É preciso ter fé! E isso a Nutrição tem de sobra. O mesmo vale para quantas calorias são gastas por um indivíduo. O que existe atualmente são cálculos levando a aproximações. Além disso, é importante lembrarmos que “caloria” é um termo calculado em função da quantidade de energia necessária para elevar a temperatura de um determinado volume da água. Só que nosso organismo não usa as calorias para isso. Ele a usa para sobreviver, produzir enzimas, sintetizar nutrientes, se movimentar, etc. Lâmpadas é que são classificadas em função da energia que consomem, não em função de sua luminosidade.

Algumas são mais eficientes que outras, como as lâmpadas frias modernas, muito mais econômicas que as antigas incandescentes. Funciona assim com indivíduos, tarefas iguais, gastos bem diferentes ainda que se considere peso, sexo, idade… Ou seja, a quantidade de energia que as diferentes pessoas utilizam para fazer tarefas distintas também é variável. Não podemos jamais acreditar na precisão de quem acha que o controle de peso é algo puramente matemático, como se fosse uma esteira na academia se não conseguimos calcular com confiança inúmeras outras variáveis.

Além disso, a tese do balanço energético de que uma caloria é uma caloria tem outros furos. Vejamos as fibras, por exemplo. Quando você consome 160 calorias de amêndoas, por exemplo, você absorve apenas 130 dessas calorias. A fibra na amêndoa retarda a absorção deixando que essas calorias fiquem para as bactérias da flora intestinal ou sejam liberadas nas fezes. Alguns vegetais, têm “apenas” cerca de 3 / 4 das calorias absorvidas. O custo energético de metabolizar os diferentes nutrientes também é muito importante. Gastamos quase o dobro da energia para metabolizar proteínas quando se compara com o gasto na metabolização de carboidratos. Este é o efeito térmico dos diferentes alimentos. E elas ainda reduzem melhor a sensação de fome, por exemplo. Assim você não necessariamente absorve aquilo mostrado na tabela nutricional do rótulo. Isso o Nutricionista considera, mas apenas em parte!

Enfim, no primeiro texto expliquei como a base de saída (razão do porquê engordamos) é mal compreendida na Nutrição. Depois disso, o Nutricionista poderá partir ainda para a questão das calorias e do balanço calórico, uma teoria que, ou não se sustenta pelas estatísticas ou que já foi fortemente rechaçada há décadas. Mas ainda que o seu Nutricionista garanta que tem ou pode ter esse controle (ele não tem!), será que ele tem MESMO? Pois amanhã vou revelar um levantamento que nenhuma faculdade ensina, mostrando que o ponto de saída da questão do balanço calórico é um achismo desde o ponto de partida.

Etiquetado ,

44 pensamentos sobre “Sobre Nutrição e Falácias – parte 2

  1. […] a Nutrição encara causa e consequência de forma equivocada, confia na ideia do balanço calórico e na contagem de calorias. Tudo isso sem embasamento, mas na base da fé e da crença. Até aí […]

    Curtir

  2. […] engordar numa clara inversão de causa e consequência. Além disso, um dos seus pilares (calorias) é falha no que diz respeito ao consumo, ao gasto, ao fator de compensação e ainda sobre o necessário para possibilitar a perda de peso. Por fim, […]

    Curtir

  3. […] possuir uma grave troca entre causa e consequência na qual se apoia a Nutrição. Depois disso falei da falta de evidências estatísticas ou de estudos sobre o balanço calórico ou da relação das calorias com obesidade. Tentei ainda falar de como ignoramos uma compensação […]

    Curtir

  4. […] [1] [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9] [10] [11] […]

    Curtir

  5. […] PARTE 2: a falácia do balanço calórico. […]

    Curtir

  6. […] não à prática. Ela segue dizendo que “importante mesmo é ter um controle calórico”, mesmo que isso não seja a causa do controle do peso. Mas como eu disse, a matéria acertou porque reuniu um grupo de gente falando bobagem. Ao lado […]

    Curtir

  7. […] NÃO está bem estabelecido como ele acredita (para não repetir tudo, explico em ordem aqui, aqui e aqui as falácias). Homer Simpson diz que você prova qualquer coisa com números, que 45% das […]

    Curtir

Duvido você deixar um comentário...

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.