A corrida tem cor? Ela é branca?

A única razão do porquê ainda existem maratonas, é porque só assim 20.000 brancos podem perseguir 3 negros pelas ruas de Boston como nos bons velhos tempos(*)“. (Daniel Tosh, comediante)

Um excelente texto em 2011 perguntava: por que a corrida é um esporte tão branco? Eu nunca tinha me dado conta até lê-lo, mas negros (aqui e lá fora) só correm e são porcentualmente expressivos ali na frente, junto da elite. Nos EUA especulam que essa questão parece ser fruto de uma preferência por outros esportes, principalmente pelo futebol americano e o basquete. Mas apontam também a falta de exemplos de inspiração, ou seja, mais negros amadores correndo que não seja um queniano que não tem, assim como não tem com você, identificação alguma com o negro americano.

Outro argumento ainda é o tal “é coisa de (e para) brancos”. Esse outro argumento é delicado, afinal, há teses e teses dizendo que o negro pobre americano não quer se parecer nem agir como um branco de classe média.

E no Brasil? Bom, eu chuto dizer que corrida é esporte e lazer para a classe média. E no caso dos pobres, a corrida é coisa pra fazer dinheiro, ganhar algo em troca, ainda que seja a esperança de um patrocínio no futuro. Na periferia não há grandes parques e os maiores centros de corrida do país são locais de alto poder aquisitivo ou de acesso fácil apenas para carros. Exemplos não faltam: Ibirapuera, Villa Lobos, USP, Lagoa Rodrigo de Freitas, Belvedere (BH), etc. Todos os locais onde eu treino devem ter o PIB per capita da Dinamarca. Definitivamente não é pra qualquer um.

Pois se correr é para a classe média, seja por questões financeiras ou afinidade social, nada mais natural que corredores tenham a cara da classe média. E a classe média daqui é tudo, menos negra. Não é uma questão de racismo, como a pressa pode querer gritar, é uma questão de estereótipos. Se não espanta que no Japão os corredores tenham olhos puxados, nada mais natural que no Brasil os corredores tenham a pele clara como a da classe média.

Quer outro exemplo? A nova vinheta da Rede Globo tem violoncelo, piano e órgão. Mas lá também tem pandeiro, cuíca e bumbo. Qual a cor da criança que você acha que aparece tocando a primeira e a segunda lista de instrumento? Não precisamos fazer muita força.

Estou falando tudo isso porque saiu no USA Today uma matéria questionando se não estaria havendo um boom da corrida agora entre os negros, justamente no mesmo período em que eles se engalfinham discutindo excesso ou não de violência policial baseado na cor do suspeito e do policial que atira sem perguntar. *aliás aqui, um longuíssimo e excelente texto explicando como somos muito mais implicitamente racistas do que pensamos.

Pra mim, esse boom entre negros se parece mais com eles se organizando em grupos de corrida do que qualquer outra coisa. Mas é fato, com mais negros correndo, por lá isso funcionaria sempre como algo que traria outros deles ao esporte.

Os EUA não são a maior potência esportiva mundial por mero acaso, essa frase mostra como pensam: “Ninguém tenta formar negros fundistas nos EUA. Não há nenhum motivo pelos quais não podemos ter negros fundistas na mesma proporção que temos velocistas e saltadores.”

Além da questão competitiva, por outro lado, ter mais negros gera mais provas, mais produtos consumidos, mais empregos e mais tudo. O que acho que nos diferencia completamente de lá é que se lá a questão é racial, aqui é sócio-econômica. Eu não me importaria com a cor do cara que treina na minha turma, mas mesmo sem admitir nós nos sentimos melhor se ele é “dos meus”, frequenta os mesmos lugares, falando em bom português: tem a mesma renda. Mas logicamente ninguém vai admitir essa colocação. O racismo está sempre no outro, nunca em você.

(*) “The only reason marathons are still around is so 20,000 white people can chase three black guys through the streets of Boston like the good old days.”

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11 pensamentos sobre “A corrida tem cor? Ela é branca?

  1. Nishi disse:

    Algumas honrosas exceções à ausência de grandes parques em SP onde há corredores: Parque do Carmo e Parque Ecológico do Tietê. E o Horto também não é de se jogar fora embora seja um parque “médio” em termos de tamanho para correr. E também tem muita gente correndo no Parque do Pico do Jaraguá. Talvez não sejam os “centros-de-corrida-formador-de-opinião-e-coisa-e-tal” da capital paulista, mas tem uma galera boa e forte da região que treina nesses distantes parques. Por fim, tem o parque Anhanguera, já fui correr lá e não encontrei muita gente (ok, era um dia de semana, numa folga excepcional), mas é enorme, tem estrutura e potencial como local periférico para a prática de corrida.

    Lógico que isso não desvalida em nada sua argumentação. Na verdade, demonstra uma coisa, ao menos em SP, que agrega na argumentação: há que se diferenciar a grande massa de corredores classe média que participam das provas mais conhecidas e essa razoável massa anônima de corredores da periferia que não participa ou participa pouco das provas mais caras e distantes (para eles) da elite econômica. Mas que de vez em quando dão as caras em corridas de bairro mais próximas e corridas gratuitas da Prefeitura. Não é um número tão significativo e nem um público consumidor forte e alvo das grandes marcas e organizadoras, mas eles existem. E correm. Alguns correm muito!!!

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  2. phrayres disse:

    Falando nisso, Danilo, outro dia ouvi no rádio um desses jornalistas que vivem no seu curral de classe média dizer que “não se joga mais bola nos campinhos de várzea”. Aqui na minha vizinhança, na periferia de Porto Alegre, jogam bola todos os dias nas praças. A maioria é negra.

    Outro dia você publicou o mapa do runkeeper, e uma das avenidas aqui perto é bastante usada por corredores, que talvez nem saibam que há poucas semanas teve uma maratona em Porto Alegre.

    A verdade é que para quem é da periferia esses eventos são muito longe, muito caros, desconhecidos, e não há glamour algum em se reunir com seus parceiros e mostrar que completou uma maratona.

    Levantamentos sobre quem corre são muito, muito, incompletos…

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  3. Gustavo Bianch disse:

    O ethos do corredor muitas vezes pressupõe a participação em corridas caras e a compra de muitos itens (tenis, shorts, gps etc) igualmente com preço elevado, o que afugenta muita gente da classe baixa. O esporte mais “democrático” do mundo é assim, democrático para alguns. Triste constatação!

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  4. Em junho corri uma meia-maratona em Raleigh, NC.
    Um grupo de corredoras acho que do “Black Girls Run!” (citado num dos seus links) estava lá.
    Depois da prova tinha música e um sorteio.
    E elas estavam lá dançando, aguardando o sorteio, muito mais animadas do que os brancos, orientais e latinos.
    Uma delas até ganhou um dos prêmios.

    Num outro dia fui com minha filha na escola dela e decidi dar uma psssada na pista de atletismo de lá. O que estava acontecendo? Treino de futebol americano. As crianças estavam praticando nos campos (acho que tem dois ao lado da pista e um no espaço interno da pista) e suas famílias estavam ocupando até mesmo parte da pista, sentados, observando e esperando. Eram muitas crianças e muitas famílias. A maioria negra.

    Também encontro uma proporção maior de negros do que de brancos nos ônibus, no terminal de ônibus. Mas não na universidade. Lá a maioria é branca.

    Bem, não quero dizer muito com isso. MInha amostra é muito pequena.

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  5. Rafael Soares disse:

    Aqui em Salvador, a cidade mais negra do Brasil (ainda é ?), no olhômetro, o percentual de negros não chega a 25%.

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  6. Belo texto Balu!
    Essa frase inicial do “comediante” achei extremamente pesada!

    Nunca tinha parado pra pensar nessa realidade, e começo a observar que aqui em Brasília não é diferente.

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  7. Além da questão dos locais de corrida há também o custo dos tênis, meio inviável para a classe C a menos que sejam usados como símbolo de status (o prophecy entra aí).

    Fora isso não tenho dados mas acho que o sedentarismo é muito mais disseminado nas periferias do que nas áreas ricas e que isso ocorre principalmente por conta da falta de mobilidade urbana – é difícil fazer esporte quando se perde 3-4 horas por dia em deslocamentos. Tudo chute mas serve para reflexão.

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    • Danilo Balu disse:

      Eu concordo… E há estudos que mostram mesmo que o sedentarismo é maior com a diminuição da renda. Menos $$, menos atividade física que é compensada em parte com trabalhos mais braçais.

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  8. […] os vencedores homens são todos negros (africanos) e as vencedoras são em sua maioria africanas, como já falei tempo atrás aqui no blog. Nos EUA a coisa é mais explícita ainda quando comparamos a proporção deles nas provas e na […]

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